Um pouco de água

Ces Michelin
Vernos
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3 min readMay 22, 2020

Eu tô tentando te escrever rápido, então não liga se notar erros de digitação. O quarto está enchendo de água. É um quarto pequeno, quatro paredes como a maioria dos quartos, uma porta fechada, uma janela fechada, uma mesa, uma cadeira, um notebook e uma luminária. Não há outra luz além da luminária, eu já testei o interruptor e ele não funciona.

Já te falei que o quarto está enchendo de água? Tá vindo por debaixo da porta. E não é pouca não, na verdade eu cruzei as pernas na cadeira porque os tornozelos já estavam molhados e congelando. Minha avó sempre disse para não tomar friagem e que as doenças começam nos pés. Os mais velhos tem um jeito muito particular de entender a medicina, mas por algum motivo eu me sinto meio gripado agora que as meias estão molhadas.

Eu sei, eu realmente não fui abrir a porta para ver o que estava causando esse aguaceiro todo. Foi por medo que eu não fui. Sei lá, enquanto estou aqui sentado escrevendo pra você, tenho tempo. Um tempo calculado e finito, mas controlado e todo meu. Abrir a porta é uma incógnita. E se eu não puder fazer nada para conter essa enxurrada, só terei acelerado as coisas.

Droga, minha perna esta dormente. Eu nunca fui muito bom com essas posições que nos dão nós. Ou talvez não tenha insistido o suficiente para me acostumar, porque as coisas tem sua hora certa para se tornar normais. Sabe, sempre tive medo de desistir bem naquele instante logo antes de conquistar algo que eu queria muito, mas mesmo assim desisti inúmeras vezes.

O medo é um alerta, mas ele não toma as decisões. Não todas. E eu deveria abrir a porta pois a água já alcançou o assento da cadeira e continua subindo. Me pergunto como é que a luminária não queimou ainda.

A água sempre foi um elemento de calma. Eu sou de Câncer para quem crê no zodíaco, eu nadei muitos anos para quem crê nas experiências da vida. Mas eu estou ficando aflito enquanto essa água preenche o quarto, toca o estofado, penetra nas fibras, enxarca os espaços... Nesse instante, toda calma é transformada em ansiedade. Já tô sentindo umas palpitações, náuseas, dor no peito... Eu deveria ter aberto aquela porta, mas agora água não pára de subir. Como é que o notebook não queimou ainda?

Eu posso abrir a janela à minha esquerda, mas teria que parar de escrever para isso e não tenho esse tempo. Se houver água do outro lado da janela só vou acelerar as coisas também; eu acho. Então sigo escrevendo e a água toca meu peito. Meus braços tremem mas a digitação não cessa. Minha pele enrijece mas minha cabeça reluta. A água sobe ao meu pescoço, encobre o notebook e mal posso ver as letras na tela. Como ela continua ligada?

Queixo, boca, nariz, garganta… Enquanto a água inunda meu estômago e desce em direção aos meus pulmões, meus dedos tentam acelerar a digitação. Mas a água lhes contém, e é cada vez mais difícil chegar em cada tecla.

A água invade meu peito. Frio!

Meus olhos saltam. Meu coração dispara. Minhas mãos insistem. Meu cérebro pulsa. Minha mente turva. Meu tempo encurta. Meu arrependimento grita. Meu medo aflora. Minha esperança cessa. Meu corpo…

A porta abriu. Era a Natty saindo do banho:_Tá tudo bem? — ela sempre franzi a testa e me pergunta com jeitinho porque diz que se preocupa quando vê a minha testa franzida, com cara de preocupado.

_Tá tudo bem, sim. Acho que só preciso tomar um pouco de água.

Prólogo — sobre ansiedade e dias difíceis

O texto acabou ali em cima. Mas eu preciso dizer que nesse tempo estranho que estamos vivenciando, minha ansiedade realmente aflora. Normalmente é algo que vem do estômago, toma o peito e traz uma angústia enorme. Quando escrevo é meio desabafo, meio tentativa de falar pra mim mesmo que isso é normal. Estamos num momento da história, das nossas histórias e do mundo, que não vale a pena nos esconderemos atrás de máscaras de firmeza e segurança.

Somos frágeis, somos humanos. E somos melhores quando estendemos as mãos uns aos outros, sem julgamentos. Você não está só. Eu também não. Obrigado por ter ficado comigo hoje até este último ponto.

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Ces Michelin
Vernos
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Escrevo textos e ideias soltas, despretensiosas. Quem sabe, podem fazer sentido para ti em algum momento.