A Indissociabilidade Audiovisual na Filmografia de David Lynch

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4 min readJul 25, 2022

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Como o fator sonoro é um dos protagonistas na estética de David Lynch

Por Pedro Vidal

É fato que dentre as diversas sentenças de morte declaradas à sétima arte uma das mais notáveis foi em relação ao surgimento do som na reprodução cinematográfica. Uma declaração fundamentada por uma série de conservadores que não reconheciam o recurso sonoro como uma extensão de possibilidades narrativas do fazer cinematográfico. Infelizmente, esse pensamento perdura até os dias: de hoje de certa forma, a maioria das pessoas enxerga (ou escuta) o som como um detalhe ou capricho técnico e não como um fator que amplia a experiência cinematográfica e conduz a narrativa. Assim como aponta Arlindo Machado ao afirmar que há uma terminologia bastante desenvolvida na área da imagem, enquanto a componente sonora é ignorada, ou tratada marginalmente. Porém, apesar dessas convicções retrógradas, também é fato que o cinema “sobreviveu”, e que uma grande frente de cineastas soube utilizar o som a seu favor para construir uma estrutura narrativa inovadora. David Lynch certamente é um desses cineastas.

“As pessoas sempre falam sobre o visual de um filme, não comentam tanto a respeito do som de um filme. Mas o som é igualmente importante. Às vezes até mais importante.” — David Lynch

O som possui uma importância crucial na filmografia de David Lynch. Quando ainda sonhava em ser pintor, antes de cineasta, Lynch escutava sons através de uma imagem no quadro e tentava passar uma ideia de movimento. Através da pintura, Lynch concluiu que som e imagem em movimento compõem a experiência cinematográfica. Six Men Getting Sick, um de seus primeiros experimentos audiovisuais enquanto pintava, mostra seis figuras animadas alucinadas pelo som estridente de uma sirene. Ambos os aspectos sensoriais contribuem para a formação de uma pulsação dentro da obra, a somatória de uma imagem degenerada junto ao som repetido constroem uma atmosfera assustadora. Assim, o componente sonoro na obra do diretor compõe a possibilidade de conjurar imagens, ou vice-versa.

Além da influência da pintura em Six Men Getting Sick, uma obra que define perfeitamente o que Lynch pretende com a união do som e da imagem é Sailing with Bushnell Keeler. Na intenção de registrar um passeio de barco com o amigo e mentor Bushnell Keeler e seu irmão Dave Keeler, Lynch subverte uma atividade mundana em uma experiência aterrorizante. Através dos ângulos oblíquos de uma câmera 16mm e uma sonoridade etérea, o filme caseiro joga o telespectador à deriva das profundezas de seu subconsciente, uma subversão audiovisual que não teria sido possível se o diretor não tivesse utilizado uma camada sonora densa e quase ritualística. É curioso pensar do que teria sido de Sailing with Bushnell Keeler se Lynch tivesse utilizado uma trilha sonora convencional.

A corrente surrealista que perpassa toda a obra do diretor — e que é amplamente discutida no dossiê #1 da Vertovina — deve muito ao seu design de som experimental e inovador, sendo um fator fundamental para o desenvolvimento da estética sonora de Lynch a parceria entre o diretor e Alan Splet. Antes de firmarem a parceria em Eraserhead, Lynch e Splet trabalharam dia e noite por dois meses para desenvolver os efeitos especiais de The Grandmother, um drama psicológico experimental que retrata os escapismos da família norte-americana. Em The Grandmother já é possível notar as principais características que iriam definir a filmografia de Lynch: a sensação de um sonho perdido no subconsciente, a descoberta de um território obscuro e, principalmente, as frequências sônicas corroendo a atmosfera. The Grandmother é um preâmbulo do que Eraserhead iria representar em 1977.

O deserto industrial de Eraserhead é a prova de que universos inteiros podem ser construídos a partir do som, através dos efeitos sonoros abstratos e a trilha sonora que remete aos órgãos assombrosos do jazzista Fats Waller, David Lynch e Alan Splet construíram a linguagem do filme fortemente pavimentada no design de som. Com Eraserhead, a parceria de Lynch e Splat expandiu suas técnicas conforme os cineastas manipulavam organicamente o som do filme, com a intenção de incrementar a sensação da presença de um poder oculto misterioso ao longo do filme. Assim, Splet gravava sons de vento e ruído com inúmeros tipos de microfones, principalmente na região de Findhorn na Escócia, e depois escolhia com David os filtros de áudio que se adequavam à atmosfera do filme. Essa abordagem meticulosa para alcançar um poder hipnotizante único através de detalhes auditivos e visuais iria se estender ao longo de toda a carreira do diretor.

Até mesmo nos filmes menos surrealistas (“lynchianos”) do diretor é possível encontrar essa conduta, seja em Blue Velvet com a nítida subversão do significado da letra de Dreams de Roy Orbinson — remetendo a experiência de Sailing with Bushnell Keeler — , ou com as trilhas sonoras melodramáticas de Angelo Badalamenti, afinal, o que seria do mistério que circunda Laura Palmer sem a sua característica música tema? Assim, os leitmotifs (uma música tema recorrente associada a uma ideia ou personagem ao longo de uma obra) escolhidos pelo diretor corroboram para o desenvolvimento da atmosfera enigmática de suas sequências, como nos diálogos reversos no Red Room em Twin Peaks.

O fascínio de David Lynch pelo som mostra que é necessário uma conciliação das terminologias audiovisuais para criar uma experiência cinematográfica única e inovadora. Além disso, o trabalho do diretor com técnicas sonoras não se limita somente aos seus filmes, já tendo escrito letras e trabalhado com produção de álbuns e videoclipes para grupos musicais, com parcerias com Angelo Badalamenti e Julee Cruise. Como o próprio diretor já afirmou, um filme deve ter 50% de som e de imagem para uma boa composição.

Referências:

https://en.wikipedia.org/wiki/Alan_Splet

http://bocc.ubi.pt/pag/penafria_som_e_doc.html

https://www.youtube.com/watch?v=nSkyGRyUIEM

https://www.youtube.com/watch?v=SOHOrd0V8Xo

https://letterboxd.com/film/sailing-with-bushnell-keeler/

https://www.indiewire.com/influencers/twin-peaks-director-david-lynch/

https://www.riotmaterial.com/david-lynch-the-grandmother/

http://www.talkingpix.co.uk/ArticleLynchandSound.html#:~:text=The%20element%20of%20sound%20has,of%20each%20of%20his%20films

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Revista mensal sobre o mundo do e cinema e audiovisual.