A Morte iminente e a morte de fato em First Reformed

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Quando os motivos para o desespero não originam uma crise interna de propósito ou potência, mas sim da raça humana, a religião, abstrata, ainda consegue responder à altura?

Por Maria Eduarda dos Anjos

A fé não é vista da mesma forma como nos anos 70. O planeta também não. A década que marca o começo do ativismo ambiental também foi simbólica para as expressões de fé; nos Estados Unidos, a febre dos Cultos Místicos ainda era forte, e, em escala global, as instituições tradicionais de religião perderam seguidores. Essas mudanças marcam as flutuações da interpretação e a prática da religião conforme o clima social, político e econômico mudam — afinal, a sociedade e a religião estão à mercê uma da outra. Pulando para 2022, o planeta colapsa debaixo de nossos pés e, para aqueles com um mísero fio de espiritualidade que seja, já ocorreu a pergunta, mesmo que passageira: “Poderia Deus nos perdoar? Depois de tudo que fizemos para este planeta?”. O ativista Michael a faz ao pastor Toller (Ethan Hawke) em First Reformed (Paul Schrader, 2018) no primeiro encontro que tem, arranjado por sua esposa Mary (Amanda Seyfried) que está preocupada com o marido. O ambientalista é ultra pessimista sobre o futuro da humanidade e não vê razão para continuar em um mundo destinado à ruína graças à sua própria espécie. Toller, por sua vez, tem o dever de apropriar-se dos ensinamentos cristãos para confortá-lo, mas seu desconforto perante os fatos apresentados por Michael sobre o aquecimento global é claro. Quando os motivos para o desespero não originam de uma crise interna de propósito ou potência, como muito já levou fiéis ao confessionário, mas sim do mundo sensível, a religião — abstrata — ainda consegue responder à altura?

O papel do Cristianismo enquanto ferramenta para lidar com o luto é incrivelmente canalizado no personagem de Toller. Ex-soldado, perdeu o filho para a mesma causa pela qual lutou — “uma tradição patriótica, assim como meu pai antes de mim”, ele justifica. Essa morte tornou seu casamento insustentável e, dentro de seu luto, encontrou vocação para ser pastor da capela First Reformed. O personagem nunca aspirou pela posição de soldado ou pastor, mas de mártir: moldou sua história de vida em prol de ajudar o próximo, de servir um grupo maior que si. Porém, quando falha com aqueles que dependiam diretamente dele, questiona a si mesmo e sua capacidade enquanto ser humano. Mas a culpa de Toller transgride o poder restaurador da fé, vendo-a como uma desculpa plausível para infligir o martírio em si mesmo. Sua religião lhe exige que pregue perdão e a empatia, nas quais realmente acredita, com exceção de si.

Na prática cristã, o sofrimento e a salvação confundem-se por diversas vezes. Como disse Rubens Alves em entrevista, “toda nossa tradição espiritual-ocidental é baseada no sofrimento. Deus se deleita quando vê o homem sofrendo […]. A ideia de que Deus é sádico”. No longa, o relacionamento com a fé é um dos disfarces que o pastor usa para que possa julgar a si mesmo. Ele tenta ascender à posição divina o máximo que é humanamente possível, já que permanecer humano é carregar todos os seus lutos, o que o asfixia diariamente. “Quem realmente sabe o que se passa na mente de Deus?”, ele pergunta ao ambiental em uma das conversas, mas age como se soubesse a resposta de seu próprio questionamento. “Quando escreve sobre si mesmo, o indivíduo não deve ter nenhuma compaixão. De quem estará se escondendo? De Deus?”, escreve no diário. Toller trai-se e machuca-se a todo momento por negar quem ele é na tentativa de atingir o inatingível, e perde os pequenos momentos de perdão e reconforto que são possíveis na vida mortal. Ser humano é ser errante, então o pastor prefere ser apenas a fé, mesmo que isso traga a decadência do corpo do qual não consegue se livrar.

Toller e Michael são dois lados do mesmo desespero: o primeiro lida com a morte pontual que foi e a que será, enquanto o segundo experiencia o luto cotidiano pela extinção do futuro. De certa forma, a distração ou amenização do luto é uma função legítima da religião. Mas o que Michael e tantas outras pessoas que não conseguem abraçá-la completamente questionam-se é: seria o suficiente? Os problemas são palpáveis e objetivos demais, a morte é numerada. O mundo real e espiritual parecem agir num raciocínio de “dois pesos, duas medidas”; muito do discurso católico baseia-se na espera, o cultivo da paciência; a espera pela justiça divina, a espera pelo pós-vida prometido, o aguardo pela ajuda de Deus em silenciar as apreensões que nos assolam. Porém, é somente dentro dessa bolha cristã que o tempo não virou um recurso não renovável e que se confia na ajuda que virá.

A mercantilização da fé é a cereja no bolo dessa desesperança. Após ir mais a fundo na destruição natural que Michael compartilhou nos seus encontros, o pastor Toller descobre que um grande financiador da rede Abundant Life, pela qual sua igreja é contemplada, é uma das empresas de fornecimento de energia que Michael protestava contra. Tal empresa financiaria diretamente as comemorações de aniversário da First Reformed. Em uma reunião para resolver os detalhes da cerimônia junto com seu superior, pastor Jeffers, Toller confronta o empresário com a mesma questão que lhe foi feita: “Deus nos perdoará pelo mal que fizemos à sua criação?’’. Ele fala que 97% da sociedade científica está em consenso com as informações, e o outro lado são os que lucram disso. Falando para o financiador mas também para o bispo superior, que estava com eles, ele questiona se “colocar de lado o chamado bíblico por zelo, quem é beneficiado quando assolam nosso próprio ninho?” e “o que há de se ganhar?”. Mais tarde, Toller é repreendido por Jeffers, o qual faz as seguintes perguntas: “você sabe quanto custa para fazer o trabalho de Deus? O que é necessário para manter uma missão desse tamanho?”. A facilidade com que algumas igrejas têm de colocar sua filosofia de lado para atender às relações do mundo Capitalista é uma forte imagem da crise da fé. Por um lado, o cristianismo não tem culpa das proporções esmagadoras que o capitalismo tomou, e, como qualquer instituição, precisa batalhar para existir. Por outro, não é fácil que as massas confiem em uma instituição que deveria ser essencialmente filantrópica e que agora faz acordos com empresas que acumulam capital às custas da criação de Deus em plena luz do dia.

Michael é um reflexo dessa geração — da nossa geração — que é bombardeado por informações, mas tem pouca agência sobre o próprio futuro. Paradoxalmente, a morte individual é o que menos importa, é óbvia; de forma altruísta, as futuras gerações importam muito mais, e, apesar de parecer o contrário, a vontade de não perpetuar a presença humana na face da terra também é uma forma de preservação daqueles que viriam. Esse impulso irracional por empatia e esperança é personificado em Mary, a esposa de Michael, que, paralela à Virgem Maria, também gesta uma criança. De todos, ela é a única que explicitamente diz que quer viver e crê no futuro de amanhã. No começo da trama, um dos conflitos entre o casal é a vontade do marido de que ela aborte, da qual ela não compartilha. Sua fé silenciosa é gritante em meio a tamanha desesperança do filme, mas nunca fora de seu limite humano. É incansável, não por ingenuidade, já que compartilhava da luta ambiental de Michael, mas por impulso, e não cancela o luto sentido pela morte de seu marido. Mary é religiosa, mas quando pede ajuda à Toller é por sua pessoa. De certa forma, é possível pensar que ser humano é uma religião própria e irracional: zelamos pelos nossos por impulso, conservamos a vida como segunda natureza. Uma outra forma de perdão diferente do martírio mexe com o pastor e talvez o faça ver santidade no secular; talvez tenha sentido a esperança inerente à humanidade, mesmo que não a entenda, e, por isso, tenha desistido de seu ato suicida no dia da comemoração de aniversário de sua igreja, assim que viu Mary entrar.

Paul Schrader traz em First Reformed uma reflexão densa e dramática sobre a crise da fé e a angústia que a falta de salvação pode trazer. Pode ser que a esperança venha muito mais do interno que externo, mas nem sua manifestação enquanto religião ou ativismo consegue servir plenamente as tormentas atuais. Talvez seja necessário recalcular rota, começar novos cultos, achar um novo Deus. Talvez esse seja o mistério da fé pós-moderna.

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