Humor/Horror: o drama de Hausu

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4 min readOct 7, 2021

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Como Obayashi utiliza do surrealismo e do humor para criar uma narrativa desconcertante sobre os horrores da bomba atômica em Hausu (1977).

Por Carolina Azevedo*

O desconcertante terror surrealista colide com uma trama de ingênua infantilidade no universo de Hausu, uma das obras mais cultuadas do terror — e por que não da comédia — do século XX, em que há uma explosão de imagens psicodélicas, sangue e artificialidades criada pelo diretor japonês Nobuhiko Obayashi.

Foto-montagem e animação 2D em Hausu (1977) dir. Nobuhiko Obayashi

O diretor opta por um terror que parte da infantilidade para criar a atmosfera do filme, composta por absurdos do horror apresentados através de uma lente de comicidade, construída com animações 2D, atuações exageradas e cenários exuberantes. Toda essa atmosfera é criada com o intuito de contar a história de um grupo de garotas que, ao irem à casa da tia de uma delas, acabam sendo devoradas das formas mais variadas pela própria casa e sua residente, que definha na esperança de que seu marido, morto na guerra, retorne.

Tudo no filme serve como forma de intensificar o absurdo da obra: um gatinho de olhos brilhantes, paisagens oníricas e personagens cujos nomes delimitam seus respectivos traços de personalidade específicos, ao molde dos personagens arquetípicos que dominavam o cinema japonês da época. Gorgeous, sobrinha da suposta vilã, é uma garota graciosa, que tem sucesso em tudo na vida. Fantasy é tida como uma garota com gosto pelo imaginário, e portanto é uma das primeiras a serem pegas de surpresa pela casa. Sweetie é atraída por uma boneca delicada que a leva à sua morte violenta. Mac é guiada a ao seu fim por uma melancia enorme, e é vista por último mordendo o traseiro de uma amiga.

Piano devora uma das garotas. Hausu (1977) dir. Nobuhiko Obayashi

Assim como as personagens, a casa ganha características próprias: inicialmente sem vida alguma, possui tons de cinza que contrastam com a artificialidade dos céus de chromakey construídos em seu exterior. É exatamente no momento em que acontecimentos estranhos começam a tomar conta da viagem das garotas que a casa começa a ganhar vida, e explosões de cor e desenhos fantasmagóricos surgem de todos os lados. Percebe-se então que a tia e a casa são uma só, e veem na juventude a única forma de manter viva a esperança daqueles que se foram.

A junção entre horror e humor serve como forma de ocultar o que a trama de Hausu realmente é: uma metáfora do drama que sofrem aqueles que foram, de alguma forma, atingidos pela guerra. Obayashi conta em entrevista: “todos os meus amigos próximos morreram por conta da bomba, então eu quis escrever uma fantasia com a bomba atômica como tema.” Assim, a primeira metade do filme procura estabelecer a leveza da geração que veio após a bomba, como adolescentes que não conheceram os horrores da guerra diretamente, mas por ela são afetados, e é exatamente sobre isso que trata a segunda parte: o poder destrutivo da bomba sobre todos aqueles que viveram desde então. Ambas as gerações, são, então, igualmente afetadas pelos horrores da guerra.

Gato Snowball. Hausu (1977) dir. Nobuhiko Obayashi

O momento que marca a metade do filme trata exatamente disso: a fusão entre as duas gerações, passado e presente, mortos e vivos, ocorre no momento em que Gorgeous se vê como sua própria mãe no espelho da casa de sua tia, e então, tudo começa a ruir. Espelhos quebram, sangue escorre pelas paredes, camas e pianos comendo garotas como criaturas imensas, e no meio de tudo isso, um gatinho branco de olhos brilhantes observa de perto, sempre lá nos momentos de horror, imperturbado.

O gato foi a forma com a qual Obayashi decidiu retratar a bomba atômica: um inimigo impassível, imprevisível, imoral, mantido vivo através de uma pintura antiga do próprio. Um artefato do passado, uma memória simbólica que havia de ser destruída para que ambas as gerações pudessem viver em paz. No cômico conto de horror, é o gato o vilão, mas no drama de Obayashi, é a negação de um passado trágico, marcado pelas atrocidades de disputas supérfluas que fazem o papel de antagonista.

Imagem simbólica do gato Snowball. Hausu (1977) dir. Nobuhiko Obayashi

*Sobre a autora: Carolina Azevedo é estudante de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e editora-chefe da Revista Vertovina. Tem como principal interesse o cinema, sobretudo quando a arte se transforma em meio de mudança social, grito dos silenciados e resistência.

Referências:

Trick or Truth (2014), dirigido por Kogonada

Breaking the Mirror: Hausu and Bad Love Objects por Erin Nunoda

“Hausu” in One Shot, por Jennifer Lynde Barker para Mubi Notebook

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Revista mensal sobre o mundo do e cinema e audiovisual.