Martin Scorsese e a música pop: em busca do needle drop perfeito

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Por Eduardo Lima

Martin Scorsese, um dos maiores diretores da história do cinema, é um mestre em usar música nos seus filmes. A fascinação por canções começou bem cedo, e é algo que ele sempre levou em conta no seu processo cinematográfico. O diretor é apaixonado por discos de vinil e pela música das décadas de 60 e 70, de onde ele tira muitas das canções que vão para suas trilhas sonoras. Scorsese adora The Rolling Stones (ele já usou dez músicas da banda em seus filmes), The Band (o guitarrista Robbie Robertson trabalhou em muitos filmes com o diretor, auxiliando a selecionar canções) e Bob Dylan (ele já fez dois documentários sobre o cantor).

O diretor estadunidense também já dirigiu um musical (“New York, New York”, de 1977, com Liza Minnelli e Robert De Niro) e está trabalhando numa biopic da banda de rock psicodélico Grateful Dead, com Jonah Hill interpretando o lendário guitarrista Jerry Garcia. Ele não se limita ao rock e pop que tanto gosta: “Touro Indomável” (1980) é cheio de ópera, “Kundun” (1997) tem uma trilha composta pelo mestre da música clássica contemporânea Philip Glass e “A Última Tentação de Cristo” (1988) tem trilha sonora composta pelo ex-Genesis Peter Gabriel.

Scorsese disse em seu curso para a plataforma Master Class que, quando começou a fazer filmes, ele sentiu que eles não teriam uma “trilha sonora propriamente dita”, e ele continuou com essa filosofia, enchendo seus filmes de needle drops. Ou seja, a maioria de seus filmes tem a trilha composta de músicas populares que já existem e são escolhidas para serem usadas no filme, excluindo alguns poucos como “Taxi Driver” (1976), com sua trilha de jazz composta por Bernard Hermann, que trabalhou muito com Alfred Hitchcock.

A flexibilidade de não usar uma “trilha sonora propriamente dita” pode ser percebida em “After Hours” (1985), filme que pula da música clássica para mariachi para folk rock, e essa aparente desconexão entre gêneros ajuda o filme a transmitir sua atmosfera de loucura e caos. O ecletismo da trilha sonora combina perfeitamente com um filme que é comédia, drama, thriller de crime, tudo junto e misturado.

Usar música pop em um filme é sempre um investimento de risco: uma música que já existe fora daquele universo cinematográfico pode elicitar todo tipo de sentimento e memória em quem assiste, dependendo da relação do espectador com a canção. Tem como usar isso bem, se aproveitando de tudo que a música representa, e tem como usar isso mal, só para alguém assistindo dizer “ei, eu gosto dessa”, mas sem adicionar nada ao filme.

Com Scorsese, a música não é só fundo, e sim parte essencial da construção das personagens e do desenvolvimento e aprofundamento da história. Música é contexto (histórico e estético) e subtexto do que está acontecendo na tela. Scorsese diz, numa entrevista para o Boston Globe em 1990, que ele só escolhe canções se elas comentam as cenas e as personagens de maneira oblíqua, não tentando deixar óbvio o que já está na tela, mas adicionar uma nova camada de significação à representação.

Se a música é tocada de maneira não-diegética (ou seja, sem que o personagem esteja ouvindo, só para o espectador ouvir) é essencial se perguntar qual o intuito disso, de que perspectiva a canção está partindo. Scorsese trabalha muito assim, querendo mostrar a perspectiva subjetiva de uma personagem, colocar o espectador nos sapatos de quem está na tela por meio de suas escolhas de enquadramento, iluminação, design de som e, claro, por meio da música.

Um ótimo exemplo de Martin fazendo isso se encontra em “Mean Streets” (1973). Na cena abaixo (https://www.youtube.com/watch?v=WZ7UwnfQ2nA), que é contada da perspectiva de Charlie Cappa, interpretado por Harvey Keitel, um dos needle drops mais famosos de Scorsese acontece: “Jumpin’ Jack Flash” dos Rolling Stones começa a tocar enquanto Johnny Boy, interpretado por Robert De Niro, entra no bar. A música não está ali para simbolizar o quão descolado Johnny Boy é, mas, como explica Patrick Willems num excelente vídeo-ensaio (embeddar essa url aqui: https://youtu.be/8O8DHdJ8U6E?t=1085 ), para mostrar como ele é visto por Charlie, que enxerga em Johnny o que ele não vê em si mesmo.

Imagine se Bentinho pudesse colocar trilha sonora nas páginas de Dom Casmurro e, ao dissertar sobre sua teoria envolvendo Capitu e seu amigo Escobar, a música “Traição não tem perdão” de Marília Mendonça tocasse ao fundo (nesse exercício de imaginação, Bentinho não é um diretor tão sutil quanto Scorsese). As coisas mudam um pouco, não? A música te guiaria a achar algo que talvez não esteja explícito. Essa subjetividade da trilha sonora abunda na cinematografia de Scorsese, mas é especialmente importante em “Os Bons Companheiros” (1990). O filme inteiro é contado da perspectiva de Henry Hill, interpretado pelo recém-falecido Ray Liotta, então as escolhas musicais o auxiliam a contar sua história de maneira subjetiva. Henry narra, e Henry também está, de certo modo, escolhendo a trilha sonora.

A música acompanha a carreira de Henry na máfia e as muitas carreiras de cocaína que ele cheirou. Começando apresentando sua paixão pela máfia e por Karen, muito pop dos anos 50 e 60 de girl groups como The Crystals embala os momentos iniciais do filme, mostrando o que se passa na cabeça de Henry (a paixão pela vida de um gângster) e o que se passa na cabeça de Karen, com uma das canções durante a clássica cena do hotel Copacabana fazendo referência a um romance em que a moça não imaginava o rumo que as coisas iriam tomar, mas acabou gostando, da mesma maneira que Karen não esperava que seu namorado fosse um gângster mas, quando percebeu, jogou o jogo.

Depois, com a progressão da vida na máfia, o pop vai dando lugar ao rock (a primeira aparição de cocaína também é a primeira aparição de uma guitarra distorcida) até que, no seu momento de maior paranoia, quando ele se encontra no fundo do poço do uso de drogas, rock psicodélico contextualiza perseguições de helicóptero e momentos intensos de estresse com músicas frenéticas que sempre são interrompidas antes de chegarem ao fim. Nenhum momento de silêncio ocorre nessa sequência que dura quase 10 minutos, com canções sendo trocadas rapidamente como uma criança ansiosa passando por uma playlist no aleatório, querendo achar a música certa para o momento. Scorsese não deixa o espectador respirar porque Henry não está conseguindo respirar.

Essa sequência, que se passa durante um dia inteiro, tem um momento em que Henry já está a algumas horas sem cheirar cocaína, e é um dos momentos mais tranquilos musicalmente falando, com uma música de rock calma que quase chega ao seu fim. Assim que o pó aparece na tela de novo, a música muda e a distorção volta. Principalmente nessa etapa do filme, a música está sempre intrinsecamente relacionada ao uso de drogas de Henry.

Um leve spoiler neste parágrafo: Scorsese consegue usar a música para dar dicas de onde ele está levando a história, prevendo o futuro. Quando Jimmy (interpretado por De Niro) olha para Morris (interpretado por Chuck Low) e o riff de “Sunshine of Your Love” do Cream tocado por Eric Clapton começa a tocar atrás, a agressividade da guitarra é suficiente para o espectador entender que Morris não tem mais muito tempo de vida. Alguns instantes depois, Jimmy manda matar Morris.

“Os Bons Companheiros” está cheio de alguns dos mais interessantes usos de música da carreira de Scorsese. Impressionam, especialmente, os momentos de violência absurda e gratuita que são acompanhados por músicas calmas, divertidas e felizes. Essas escolhas irônicas de trilha sonora são de uma riqueza enorme, não só criando um contraste muito forte e estarrecedor, que choca o espectador e realça a violência, como também mostrando que, para quem está cometendo a violência, aquilo ali é normal, chegando até a ser prazeroso.

O filme “Silêncio” (2016) não tem nenhum needle drop e tem uma trilha sonora construída em cima de sons da natureza que é tão efetiva em criar um som diferente e com características Zen que, por causa de sua sutileza, foi desconsiderada pela Academia para a competição, por não ser um “corpo de música substancial”. Nesse filme, o diretor não só trabalha com música que se mistura ao design de som como também faz grande uso da ausência de música, ou seja, do silêncio.

Não é a primeira vez que ele usa o silêncio como ferramenta: a ausência de música exacerba a esquisitice de certos momentos em “O Rei da Comédia” (1982) e dá força emocional para outros em “Touro Indomável”, mas o mestre da música pop no cinema não tinha deixado ela de lado tão completamente como nesse que é talvez seu longa mais pessoal.

No filme, o jesuíta Rodrigues (interpretado por Andrew Garfield numa performance muito subestimada, mas arrasadora) fica sempre à espera de ouvir a voz de Deus, mas só recebe os sons de grilos e da água batendo contra as pedras. Aqui, Scorsese entende que o silêncio pode ser uma ferramenta mais poderosa que a música, porque o que importa não é o quão legal uma canção é, mas o quanto ela consegue avançar a história ou auxiliar o desenvolvimento de uma personagem. Quem sabe Deus estivesse falando com Rodrigues mas, como ele esperava algo bombástico, talvez uma música dos Rolling Stones, deixou de perceber o suave som das ondas do mar, o suave som de Deus a falar.

P.S.: Eu não sei quanto essa escolha teve a influência de Scorsese e como não é em um filme eu não incluí no texto, mas não posso deixar de falar do maravilhoso trailer de “O Lobo de Wall Street” (2013) com “Black Skinhead” do Kanye West de fundo. O trailer tem uma edição primorosa que usa essa porrada em forma de música de maneira muito inteligente e é muito, MUITO maravilhoso. Veja por você mesmo: https://www.youtube.com/watch?v=iszwuX1AK6A

P.P.S.: Martin Scorsese faz uma breve ponta no documentário “One Direction: This Is Us” de 2013, onde ele aparece falando que gosta das músicas da banda depois de ser apresentado a eles por sua filha. Não só de Rolling Stones viverá o homem!

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