Rainer Werner Fassbinder — O diretor mais louco, genial e prolífico da história do cinema.

Marco Aurélio Corrêa
Viagem Ao Fim Da Noite
6 min readAug 20, 2018

Anteriormente a todo resto e mesmo que não interesse — Fassbinder é meu diretor favorito. Seus filmes literalmente salvaram a minha vida, por motivos que interessam menos ainda. Além de diretor, roteirista e inúmeros créditos que ele tem durante os filmes, ele também era um ótimo ator. Quanto a vida de Fassbinder, ela era o cinema e não existia separação entre às duas coisas (nunca há, mas ele escancarava isso). Sua própria mãe aparece em inúmeros filmes (como vingança pela infância recebida) e seus múltiplos relacionamentos amorosos com atores e atrizes eram eles mesmos conduítes para sua obra. Além dos seus facilitadores influenciarem o roteiro e serem alvos do seu sadismo (de uma maldade sem paralelos no cinema), seus filmes também eram tentativas explícitas de conquistar alguém, pois ele era extremamente feio e tímido (e em dois casos tentativas de se conciliar com suicídios dos quais ele parece ser a causa). Seus filmes são tão auto conscientes que parecem arrogantes e esses extremos têm uma correlação óbvia: o cinema foi maior que a vida de Fassbinder, inclusive pelo fato dele ter mais filmes que anos de vida (ele viveu até os 37 e fez 44 filmes…em 14 anos). Provavelmente ele é o único gênio prolífico do cinema. Os heróis de Fassbinder pertencem ao seu ethos transgressor e anarquista, a maioria advém do lumpenproletariado ou de qualquer minoria lutando contra a ordem social burguesa do milagre econômico alemão. Obviamente seus filmes só eram possíveis pelo financiamento do estado alemão e obviamente ele distorcia algumas coisas para ter acesso a um financiamento melhor. Porém, Fassbinder era igualmente odiado por todos aqueles que tentava representar, talvez pelo fato dele ser um tremendo ironista. Ironia essa que ele aplicava aos sentimentos humanos como grande motor da desgraça do mundo. A vida de Fassbinder cheirava a álcool e cigarros (coisa que ele consumia em quantidades industriais), tinha uma trilha que ia do erudito ao krautrock que ele escutava constantemente (no seu enterro os presentes escutaram por duas horas o que ele mais gostava). Era um homem brevemente casado que manteve a noiva esperando na porta de um quarto enquanto transava com dois homens, também um homem que dormia em qualquer lugar viável para isso, por fim era tudo decorado com substâncias ilícitas. Enquanto terminava o roteiro para um filme sobre Rosa Luxemburgo (o que certamente iria lhe garantir o ódio dos herdeiros da liga espartaquista), Fassbinder morreu da combinação das substâncias que mais habilitavam seu ritmo de trabalho: cocaína e barbitúricos. Tudo isso seria irrelevante de ser contado geralmente, mas a vida de Fassbinder é tão importante quanto os protagonistas dos seus filmes. Fassbinder teve uma fase inicial influenciada por uma espécie de anti-teatro, o meio da sua obra são uma torção do melodrama e isso tem uma intersecção com uma fase final onde os filmes são de alto orçamento. Vou explorar os mais pessoais. Desses os melhores são: Medo Consome a Alma, O Direito do Mais Forte e Num Ano com 13 Luas. Todos os três filmes têm relação com os dois amantes de Fassbinder que cometeram suicídio: El Hedi ben Salem que é Ali em Medo Consome a Alma e tanto O Direito do Mais Forte quanto Num Ano com 13 Luas são dedicados e inspirados em Armin Meier, sendo um feito durante a vida e outro depois da morte dele. Em O Medo Consome a Alma, que é uma releitura de Tudo Que o Céu Permite de Douglas Sirk, Emmi é uma faxineira sexagenária alemã que encontra o amor junto de um marroquino muçulmano vinte anos mais novo, o amor e a perspectiva de um casamento vão progressivamente corroendo seus outros laços sociais. Em tempos complicados, esse é o filme essencial sobre xenofobia, porém não é piegas nem explicativo, todos os preconceitos possíveis são explorados dentro do filme e não há um único personagem virtuoso sem esses traços. Os personagens somente encontram aceitação pelas maneiras que se deixam ser usados pelos outros. Como é muito comum nos seus filmes, os sentimentos são explorados pela sua distorção (ou no que ele via como realidade), aqui amor é simplesmente medo. O filme inteiro foi feito em 15 dias e com o protagonista sendo um ator não-profissional, porém além da atuação de El Hedi ben Salem ser ótima, tudo é filmado com maestria — principalmente em como o enquadramento se relaciona com as distâncias sociais e como sempre a paleta de cores exuberantes dos filmes de Fassbinder. Já O Direito do Mais Forte é a dialética do senhor e do escravo sem aufhebung. O personagem principal é baseado no amante de Fassbinder (Armin Meier) e os modos que Fassbinder lhe maltratava. Assim, esse é o primeiro filme de Fassbinder com temática gay (curiosamente ele foi acusado de ser homofóbico, pois seus personagens gays eram tão ou mais cruéis que os heteros). Franz (interpretado pelo próprio Fassbinder estranhamente magro) é um simplório funcionário de um circo que ganha na loteria, logo ele começa uma relação amorosa com o filho de uma decadente família burguesa, assim todos se envolvem numa trama diabólica para tirar o dinheiro de Franz. O filme é extremamente fatalista e de fato duas coisas podem irritar o espectador: o fato de o fim ser completamente previsível e o fato de Franz não perceber absolutamente nada do que está acontecendo. Nesse filme o amor é resultado da circulação de dinheiro (o espectro marxista é maior que em qualquer outro filme de Fassbinder). Michael Ballhaus que sofria bullying constante de Fassbinder (e iria ter mais sucesso fazendo vários filmes do Scorsese) faz a ótima fotografia do filme, que com a edição e os sets, criam a atmosfera naturalista e decadente da vida de Franz. Por fim, Num Ano Com 13 Luas, é mais bonito e mais deprimente (mas como diz um personagem, enquanto os filmes forem deprimentes a vida não será). Também é o meu favorito (e do Richard Linklater). O título referir-se a um ano lunar com 13 luas novas, que é dito ser particularmente catastrófico. Um desses anos foi 1978, ano do suicídio de Armin Meier, amante de Fassbinder que se matou após o diretor não tê-lo convidado para seu aniversário (El Hedi ben Salem também se matou um ano antes, mas a notícia não foi dada a Fassbinder que só o homenageou no seu último filme, quando finalmente lhe foi contado). Esse acontecimento é o impulso criador do filme. Após trocar carícias com um desconhecido, a transexual Elvira é espancada, pois, esse descobre que ela não tem um pênis. Elvira volta para casa e busca conforto no seu amante Christoph e este é ainda mais cruel. Além de atacar fisicamente Elvira, a humilha pela sua falta de feminilidade e por ser psicologicamente fraca (particularmente por reclamar que está gorda). Logo descobrimos o nível da volatilidade psíquica da protagonista: Elvira quando ainda era Erwin se apaixonou por um empresário (de um ramo pouco nobre) chamado Anton (até esse ponto, Erwin nem gay era, simplesmente amava Anton, pois julgava que este lhe compreendia) e quando se declarou para ele, este disse que aceitaria se ele fosse mulher, imediatamente Erwin trocou de sexo e se arrependeu, pois, nada conseguiu. No demais, acompanhamos a vida alienada, isolada e desesperada de Elvira nos seus últimos dias. Toda sensação que Elvira tem de ter sido operada para trocar de identidade, além de que foi de fato operada por forças maiores durante toda vida, aparece numa cena num abatedouro. Nesta cena Elvira conta a história de sua vida (desde quando era Erwin, casado e pai). Enquanto a história é contada, as cenas se intercalam com cada detalhe do processo gradual do morticínio das vacas. A dilaceração de Elvira assim se torna palpável. O filme é fundamentalmente sobre abandono, mas o abandono metafísico, o que resta é o mais absoluto niilismo. Aqui o amor é a pureza da morte. Obviamente é tudo tão trágico que tem traços de humor. A atuação de Volker Spengler (Elvira) é magnífica, a indecisão sexual da personagem é uma constante que pode ser vista nele durante todo filme. Fassbinder por fatores mais diversos fez seu filme mais pessoal da maneira mais solitária. Ele escreveu, produziu, dirigiu, editou, concebeu e filmou tudo. Esse também é o único filme que ele fez a fotografia e com isso temos o maior senso de estranhamento (o belo monólogo de Elvira no abatedouro tem o visual horroroso de um documentário, enquanto seu fim é de uma beleza ímpar). A trilha também vai de Roxy Music até Handel e cada som do ambiente (principalmente da televisão) vem compor os mais diferenciados climas. Apesar de Fassbinder dizer que sempre fez o mesmo filme várias vezes, eu só queria ter um pouco dessa “falta de criatividade”, porém, quase próximo da idade que ele tinha quando fez o último desses três filmes, penso que para mim é tarde demais e só restou escrever mal esse texto.

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