Thomas Bernhard — Perturbação (Em um mundo horrível é melhor falar sozinho?)

Marco Aurélio Corrêa
Viagem Ao Fim Da Noite
4 min readAug 19, 2018

Thomas Bernhard deve ter lido The Waste Land e pensado que tem muita alegria e esperança. Seus livros são o retrato do absurdo obsessivo de viver, onde levantar da cama já é uma desgraça. A riqueza (se é que se pode chamar assim) da vida que ele retrata pertence ao mundo das neuroses, psicoses e perversões; de resto, tudo é desinteressante e tudo que é organizado pela sociedade já existe num avançado estado de entropia. Bernhard logo no início da sua vida teve a experiência profunda das falhas do mundo. Foi abandonado pelo pai, rejeitado pelo pai adotivo, psicologicamente torturado pela mãe; disso seguiu sua vida para um subemprego, terríveis problemas respiratórios (condição médica que levou a sua morte por suicídio assistido) e um dom para o canto obviamente interrompido. Também fracassou como estudante até se estabelecer como escritor. Uma alegria ele teve na vida que foi a relação com seu avô (artista, revolucionário e livre pensador), a ele Bernhard agradece por tê-lo salvo de uma vida normal que seria mortal (meu avô era muito parecido e fez o mesmo, realmente é coisa para se agradecer). Além disso, Bernhard publicamente só gostava de uma senhora que ele cuidava, já o todo resto da humanidade ele dedicou seu desprezo, a não ser por deixar obras como Perturbação. O livro começa seguindo a rotina de um médico austríaco acompanhado pelo seu filho numa cidade pequena (filho que é um narrador não confiável, mais repetindo o que foi dito pelos outros que outra coisa). Uma espécie de “educação sentimental” misantrópica. O médico, que também tem uma filha que acabou de tentar suicídio, acredita que coisas fora da medicina (fora de seu controle) criam os personagens loucos e violentos da cidadezinha (o livro já abre com um infanticídio tratado sem nenhum alarde). O doutor enquanto se baseia em múltiplos filósofos, imanentiza toda a bizarrice dos acontecimentos, na sua teoria do que seria uma “brutalidade natural” (um fracasso da filosofia). Enquanto eles visitam as figuras da cidade, os encontros ficam progressivamente mais presos nas múltiplas contradições humanas e no completo horror. O mais interessante é que por mais que esses personagens estejam todos em situações limítrofes, nenhum deles parece caricato, todos são ricamente descritos. Eventualmente o doutor e seu filho chegam num castelo que poderia ser do Drácula (Hochgobernitz) e se deparam com o Príncipe Sarau que de lá observa toda cidade. Daí o livro muda completamente e se torna uma diatribe do Príncipe sobre vários assuntos (a vida no castelo, abstrações metafísicas e análises da miséria humana já apresentada na primeira parte). A fala do Príncipe simplesmente prossegue esmurrando o leitor, em alguns pontos é tudo muito engraçado e parece que Bernhard queria que essas ideias entrassem na cabeça pela força. Porém, a exposição que o Príncipe louco e solitário faz é brilhante, toda vez que começa a parecer cansativo alguma operação retórica coloca o leitor de volta no monólogo (100 páginas para se ler de uma vez só, pelo menos eu que também sou um tanto lunático fiz isso). De fato Bernhard é um mestre do monólogo (forma mágica que se torna o molde para os livros subsequentes), da repetição (a história até a sintaxe) e da reclamação; porém esse é o ápice deles (os outros romances pareçam mais coesos, então acho isso praticamente sozinho). A loucura do príncipe que todos percebem, o doutor de maneira alguma trata, sendo até complacente com ela. Tudo é tão histriônico e lunático que parece que é o Dostoiévski escrevendo Notas do Subterrâneo entupido de anfetaminas. Se tem uma ode a loucura, ela não foi escrita por Erasmo, mas é esse monólogo do Príncipe. A viagem didática que o doutor queria fazer com seu filho falha completamente, pois o sorumbático Príncipe toma conta da mente dele e o doutor em toda sua alienação médica é um fracassado. Alguns críticos pensam que o Príncipe é uma metáfora para a Áustria no pós guerra; penso que isso é muito simples, pobre e idiota (O autor tinha um ódio sem paralelos pela Áustria, proibindo até a publicação depois de sua morte de tudo que ele escreveu lá, isso nem de longe combina em como ele trata o Príncipe). De fato, metáforas históricas entre entes completamente distintos são um grande fracasso, mesmo que essa seja a ideia explícita do autor (também é um tanto irrelevante). Bernhard é, na verdade, bem direto, tudo é muito óbvio, até em suas referências auto biográficas (muito fáceis de serem apreendidas, pois, ele fez uma autobiografia chamada Origem). Bem, estou divagando, simplesmente leiam o livro, vocês vão rir, nem que seja de desespero.

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