Helóina é de Deus

Victória Silva
vicctoriasilva
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4 min readJul 5, 2019

Uma estante foi colocado no canto da sala, para aproveitar o espaço até então perdido. A imagem de Nossa Senhora Aparecida está na primeira e na última prateleira.

Exú.

Jesus Cristo.

Preto Velho.

Virgem Maria.

Uma vela vermelha e outra branca, lado a lado, acessas.

Imagem: Diego Barbosa #PraCegoVer fotografia na qual Helóna está em primeiro plano vestindo azul. Atrás dela a parede tem um tom de rosa e no canto esquerdo o altar com imagens de santos católicos e orixás. Vasos com plantas estão dispostos nos cantos.

O fogo que trepida com o vento que passa pela janela semiaberta ilumina os vários andares do altar onde vivem santos católicos e orixás. Todos estão em harmonia na mesma estante. Mas também estão no móvel ao lado, no quarto e principalmente no coração de Helóina. Nascida em Inhambupe, interior da Bahia, em um ano que prefere não se lembrar, a senhora de sorriso sempre largo diz que é católica e também da umbanda. As duas religiões na mesma medida.

Minha vida é de crianças

Ambas as religiões fazem parte de sua vida desde que sua memória é capaz de lembrar. E foi ainda na infância que ela conheceu Maria Helena e Nelito, as duas crianças para quem empresta seu corpo desde os onze anos de idade.

Na primeira vez que os recebeu, ficou boba. No lugar das memórias tinha apenas um branco que não a permitia lembrar o que tinha acontecido. Ouviu os relatos de quem assistiu e se encantou. Hoje em dia, cuida dos brinquedos das duas crianças como se fossem seus filhos.

“Eu recebo os dois. Eles pedem e ganham bonecas. Eu não sei quantas tenho no meu quarto, são muitas. Eu guardo tudo pra eles, não deixo meus netos brincarem que é para não estragar. Tem a prateleira das pretinhas igual eu. Outra com os bebezões e também uma com as maiores”.

A última boneca ainda está na caixa, ao lado de sua cama. De vestido rosa e cabelos presos dos dois lados, a boneca ainda não tem nome e não se juntou a turma que vive apertada nas prateleiras. A novidade da coleção foi presente de uma das filhas. Florisvalda é quem sempre a acompanha nas idas quinzenais ao centro.

“Ela viu eu receber. A criança pediu e ela me comprou essa. Achei tão bonitinha que ainda não tirei da caixa”.

Imagem: Diego Barbosa #PraCegoVer fotografia de Helóina sentada em sua cama. Em suas mãos está uma das bonecas de sua coleção, a boneca é pequena, tem a pele negra e usa vestido rosa.

E foi assim que as bonecas começaram a chegara ao quarto. Primeiro a partir dos pedidos das crianças que eram atendidos por quem assistia Helóina se transformar e em seguida porque todos os netos lembram da vóloina sempre que passam por uma loja de brinquedos. É um dos presentes que ela mais ganha. E também o preferido.

“Outro dia vi uma linda, parecia um bebê de verdade, custava R$ 700. Muito dinheiro né? Meu neto disse que ia me dar, mas quando voltou estava mais cara e não deu para comprar”.

Na ausência da boneca reborn, Helóina — que trabalhou de babá na infância, para fugir da roça e continuar estudando — tem crianças constantemente em sua casa. São 14 filhos, algo em torno de 32 netos e alguns bisnetos. E ela diz que ainda quer ser tataravó.

Vovó, te amo

Não há dúvidas de que é a rainha da família.

Perto deu seu altar, uma madeira entalha que diz “vovó te amo” está pendurada na parede. Não há vírgula, mas para a vó coruja isso não é um problema. Aliás, ela nem se deu conta desse detalhe. Amou o presente. Mas ela ama todos os presentes por igual. Assim como ama todos os netos e filhos.

Dos 14 filhos, deu à luz a seis. Quatro foram adotados e outros quatro eram filhos de sua falecida irmã.

“Quando eu vim para São Paulo fui morar com a minha irmã, quando ela faleceu eu comecei a tomar conta das crianças. Acabei casando com o meu cunhado. Ele não me pediu, avisou meus pais e foi me buscar no trabalho. Eu lembro que discuti com ele naquele dia, eu tinha um paquera no posto de gasolina e ele chegou dizendo que era meu noivo”.

Mesmo antes do casamento, que aconteceu na Bahia, ela já tinha os sobrinhos como filhos. Após a primeira gravidez as coisas não mudaram: cuidou de todos os filhos da mesma maneira, com as mesmas regras e carinho. Aliás, ela não diz quem são os filhos que carregou na barriga e quais foram gestados pela irmã.

“Não existe isso de filho adotivo. São todos filhos igualzinho”.

Eu gosto de festa

Nas sextas-feiras santas é tradição: filhos, netos, bisnetos e toda a família se reúnem na casa onde Helóina mora desde cedo. Primeiro para preparar a ceia, depois para uma oração e para agradecer a Deus e em seguida para o almoço — que normalmente acontece perto do horário do jantar, ela confessa.

A cozinha não é grande suficiente para tanta gente, são apenas seis cadeiras na mesa. Por isso as panelas são dispostas no quintal da casa. Os mais velhos sentam nas cadeiras e os mais novos se espalham pelo chão.

“Às vezes os netos chegam sem camisa ou de boné e eu já aviso, na hora do jantar não aceito nada disso. Tem que estar de roupa e sem chapéu na cabeça. Todos respeitam”.

Imagem: Diego Barbosa #PraCegoVer fotografia dos olhos e sorriso de Helóina. No canto esquerdo está uma folha de uma planta verde.

Quando questionada sobre o segredo para uma família unida e que respeita as tradições, inclusive de pedir e benção aos mais velhos, ela diz que não existe um segredo. É apenas o amor e Deus.

Obrigada por ler até o final :)

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Victória Silva
vicctoriasilva

Conto histórias na internet e falo sobre as coisas mais legais que acontecem em Santos (SP).