“Que vacinem os macacos!”

Viés
Viés
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2 min readJan 19, 2018

Os ouriçados oscilavam entre calor, murmúrios e risadas com a própria situação

Em janeiro, faz calor em São Paulo. Sob o sol das três da tarde, homens, mulheres e crianças eram protegidos apenas pelas árvores do Centro de Saúde Escola Barra Funda. A fila estendia-se para fora do terreno do posto de saúde. Ambulantes vendiam sorvetes e disputavam terreno com o sujeito que vendia cachorros-quentes e pastéis à porta.

“Aqui tem muito macaco”, disse o sorveteiro olhando para a copa de um eucalipto que sombreava a fila. “Se a gente ver algum macaco, vai morrer”, disse um mecânico que ostentava a senha 720 para ser vacinado, provocando risos nos presentes. “Por que não vacinam o macaco?”, emendou o amigo, também ostentando a camisa que levava o nome da oficina. “Nós que temos que ficar aqui na fila, mas podiam vacinar é os macacos”, provocou.

“Péra aí”, emendou um senhor que estava à frente dos mecânicos. “O macaco também é vítima. O culpado é o mosquito”, causando rebuliço, antecedendo alguém argumentar que era o vírus o grande vilão – o que não agradou ninguém, todo mundo detesta mosquito. “Não”, soou uma voz feminina e idosa de trás. “A culpa é da roubalheira dos políticos, da ineficiência do Estado”. Todos pareceram concordar.

“Sim, a doença voltou depois de tanto tempo, né?”. “E outra: e essa fila? Meu filho não conseguiu se vacinar aqui, teve que ir para o trabalho”. “É que ontem esse posto de saúde saiu na Globo”. “Eles estão causando pânico”. “Não, é função deles informar, senhora”. A culpa, no fim da discussão, ficou mesmo nas costas do Estado.

“Queria ver o Doria aqui, nessa fila”. “Nada, ele pode pagar trezentos mirréis no particular”. A fila andou.

Entre chororôs de criança, piadelas ecoavam: “Doeu quando você tomou? É na bunda?”. Todos riam.

Enquanto os ouriçados oscilavam entre calor, murmúrios e risadas com a própria situação, uma senhora marcava cirurgia para a mãe, sentadinha com a bengala, na sala ao lado. “Daqui quanto tempo?”, indignada, indagou.

A picadela dada numa saleta não dói. Se havia ar condicionado, não se sentia. O enfermeiro pingava enquanto pedia para que um homem arrancasse a blusa, o que lhe constrangia.

O rebuliço seria pior no dia seguinte. Estava mais quente às 8 horas da manhã, a fila estendia-se ao fórum ao lado. O sorveteiro deleitava-se, o pasteleiro ganhava mais. A senhora das senhas, uma loura-pintada-com-cara-sisuda, era xingada a cada entrega. “Já estou aqui há duas horas”, argumentava um.

“Eu perdi o serviço”, disse o mecânico. “Mas não vai perder a vida”, respondeu o amigo. “Olha o sorvete!”.

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