A angústia do excesso

Por que escolher um filme no Netflix num domingo à noite tem transformado minha vida num inferno

Marcos Vinícius Almeida
6 min readApr 27, 2015

Até o mês passado, eu tinha três serviços oficiais de filmes e séries: Netflix, Now Clube e TV paga. Abri mão do Now Clube e da TV por assinatura. Mesmo assim, é muita coisa. Não fiz o cálculo, mas é preciso muitas vidas para dar conta de ver tantos filmes.

De repente, era como se eu tivesse uma grande locadora à disposição. E se mesmo assim acontecesse de não encontrar aquele filme turco de três horas no acervo de nenhum dos serviços, bastava recorrer a um bom e velho torrent disponível em um desses generosos blogs especializados.

Mas ter um catálogo assombroso de filmes a sua disposição não é necessariamente algo que torne a experiência de ver um filme num domingo à noite algo prazeroso. Na verdade, quando se tem tanto conteúdo a disposição a coisa mais simples do mundo — escolher um filme — é uma tarefa árdua e na maioria das vezes frustante.

Antes da internet e do Netflix, esse problema não era tão grave.

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Quando me mudei para São Paulo, em 2012, uma das coisas que me surpreendeu foi que a minha namorada ainda frequentava uma locadora. Fiquei espantado. No começo, achei aquilo um tanto quanto sem sentido. Mas ao invés de convencê-la a abandonar a prática, achei melhor aproveitar o momento. Havia um certo ar de romantismo e resistência no ato de sair de casa e flanar pelas estantes à procura de um filme para rebater a natural angústia de fim de domingo. Uma locadora de filmes é uma espécie de objeto arqueológico do passado recente. Resquícios de um mundo que não existe mais.

E realmente não durou muito. Eles até tentaram competir com a realidade online, oferecendo um serviço de entrega de filmes em casa. Você fazia o pedido pelo site e eles deixavam o DVD na portaria do prédio. E depois buscavam no dia seguinte. Tarde demais. Em meados de 2013, passamos na Washington Luís e a única coisa que tinha sobrado da locadora era um prédio pichado e abandonado que provavelmente seria demolido para se transformar num posto de gasolina ou buffet infantil.

Numa locadora, mesmo quando acontecia de ficar em dúvida sobre o filme, logo você atinava: estou perdendo tempo. Diferente do conforto do sofá da sua casa ou da sua cama — ficar prostado diante de fileiras de filmes lendo a sinopse de cada um deles causa dor nas pernas. Longe de casa a paciência é sempre menor — e a perda de tempo mais concreta. Você acabava decidindo mais rápido.

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No mundo pré-internet

Durante a década de 90, na era pré-internet, se você morasse numa cidade do interior do Brasil — e não tivesse um videocassete — é provável que sua única experiência com cinema fosse pela TV aberta: Tela Quente, Cinema em Casa, Sessão da Tarde, Sessão das Dez.

Não tínhamos TV por assinatura. E minha minha mãe só foi comprar um videocassete por volta de 98. TV de tubo, antena parabólica. E até aí, minha experiência com cinema se resumia a Tela Quente e a varar madrugadas assistindo filmes no Corujão.

E na TV aberta, olhando agora, o Corujão parecia ser o que havia de sofisticado: um dos poucos lugares onde era possível experimentar filmes legendados, em preto e branco.

Todavia, a maior emoção vinha com a roleta russa dos “lançamentos” do ano: poderia ser coisa boa, poderia ser só porcaria. O importante era bater coração aos dez anos de idade com a chamada dos filmes que iriam passar na TV no ano seguinte. Não dá para imaginar a alegria que essas coisas causavam.

O máximo que poderia acontecer em 1992 é você perder tempo vendo um filme ruim. Um único filme disponível (dublado, sem pause, com intervalos) — a escassez te privava da angústia de ter que escolher. Por isso, aos olhos daquele menino dos anos 90 apaixonado por filmes, a quantidade de conteúdo que tenho disponível hoje na minha TV é um mundo dos sonhos — um verdadeiro paraíso.

Mas longe de ser um bálsamo, ter tanto conteúdo à disposição despejado na sala a qualquer hora, como você quiser tornou-se minha ideia de inferno: transforma aquilo que você ama em algo desolador.

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A gente ia ao cinema quase todo fim de semana, antes do nosso filho nascer. Nem televisão em casa a gente tinha. As pessoas se espatavam quando entravam em casa e constatavam a ausência de uma tela na sala.

“Mas como vocês conseguem viver assim?”

Quando nasceu nosso rebento as coisas mudaram. A gente praticamente deixou de ir ao cinema. Diante disso, eu comprei uma TV e assinei esses serviços de filmes, para garantir que a gente pudesse relaxar um pouco depois que o menino dormisse.

Mas não é sempre assim.

Tem dias que levo uma hora para escolher um filme. Às vezes mais. E quando finalmente termino, já estou com sono. A Raquel já perdeu a paciência e a pipoca acabou faz muito tempo. As pedras de gelo no suco já derreteram por completo. É praticamente impossível se decidir. E quanto mais irritado e angustiado, pior. Às vezes penso num filme o dia todo mas quando abro o Netflix vem esse impulso de navegar pelas sugestões. Ver o que há de novo. E aquela nova série que todo mundo vem comentando? E você encalhou na segunda temporada de Breaking Bread há mais de seis meses — e sem perspectiva de continuar. E não se esqueça da nova temporada de House of Cards. Também não pode deixar de dar uma olhada no Demolidor. Outra coisa: estamos na metade de 2015 e você nem viu ainda todos filmes tidos como os melhores de 2014. Há pelos menos uns dois de 2013 que ficaram pendentes. E as coisas só vão piorar.

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Em um labirinto onde tudo parece importante de repente nada importa.

Ainda não desenvolvi nenhuma metodologia para evitar ser arrastado para dentro desse oceano de caos e saturação. E não adianta ler resenhas e pegar indicações: quando se abre o aplicativo você é tragado inevitavelmente para uma zapeada por outros filmes. É a mesma lógica de abrir o navegador para dar uma olhada no e-mail e de repente perceber que passou três horas fazendo absolutamente nada no Facebook.

No fim das contas, a solução é rever um clássico, ao invés de se arriscar nas trilhas de um filme de qualidade duvidosa. Nada é pior que passar tanto tempo escolhendo um filme e no fim das contas escolher um filme ruim.

Mas então você pensa que ficar revendo filmes antigos e clássicos que você já viu trocentas vezes te coloca numa posição que você não quer estar: um tiozão parado no tempo — daqueles que acham Pink Floyd transgressor — e que perdeu a capacidade de compreender o mundo ao seu redor.

Alguém que ficou para trás.

A melhor coisa a fazer é desligar a TV. Dormir. Já é tarde. Tanto faz. A angústia continua — e não vai te abandonar.

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Marcos Vinícius Almeida

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com