Não é piada: o combate ao racismo na cultura

Da Publicidade ao programa humorístico — os espaços em que o preconceito ainda acontece.

Francine de Oliveira
Vidas negras no RS
8 min readJul 15, 2020

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Fonte: Só Sergipe/Google Imagens

Em 1952, foi lançada a esponja de aço inox “Krespinha” que trazia em sua embalagem o desenho de uma criança negra para “ilustrar”. Mês passado, a Bombril relançou o produto com outra embalagem, mas mantendo o nome original, o que gerou polêmica nas redes sociais. As pessoas acusaram a marca de racismo por causa do trocadilho entre esponja de aço e cabelos crespos feito e a hashtag #BombrilRacista foi parar nos Trending Topics do Twitter.

A criadora da Winnieteca, Winnie Bueno, se manifestou em seu perfil no Twitter sobre o ocorrido:

“Krespinha, a esponja de aço da Bombril, perpetua estereótipos racistas e imagens de controle que associam o corpo de mulheres negras ao trabalho doméstico pesado. O nome e o mkt é baseado em racismo. Fere historicamente a subjetividade de mulheres negras e segue firme no mercado”.

Postagem original da Influencer (Fonte: perfil de Winnie Bueno no Twitter).

Após a repercussão do caso, a Bombril, através de um comunicado oficial no Twitter, decidiu remover a marca de seu portfólio de produtos.

Na foto, as duas embalagens do produto “Krespinha”. A direita, a embalagem original de 1952. (Fonte: Google Imagens).

Ainda na trilha dos exemplos, recentemente tivemos um ataque racista em aulas online de duas instituições federais de ensino aqui do estado: A UFSM (Universidade Federal de Santa Maria) e o IFRS (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul). O primeiro caso ocorreu em uma aula promovida pela UFSM em Palmeira das Missões no dia 6 de julho. Segundo a professora Vanessa Kirsten, responsável pela reunião, tudo começou quando um grupo grande de pessoas começou a solicitar, ao mesmo tempo, acesso à aula. Após isso, essas pessoas começaram a fazer comentários maliciosos, de deboche, para atrapalhar e, em seguida, começaram a ameaçar os participantes. Foi aberto um Boletim de Ocorrências na Polícia Federal de Santo Ângelo, que já instaurou um inquérito para apurar os fatos.

A aula promovida era do curso de Nutrição e abordaria o tema Saúde e Nutrição da População Negra e tinha como convidada a professora da UFRGS (Universidade Federal do Rio rande do Sul), Fernanda Bairros. A ideia da aula, segundo Vanessa, era debater a saúde da população negra, tema pouco difundido, e por isso a live foi amplamente divulgada. Em entrevista ao G1, Vanessa Kirsten comentou o ocorrido:

“Não posso dizer que foi uma invasão porque o link era aberto e eu permiti a entrada dessas pessoas. Mas no momento em que percebemos que eles queriam atrapalhar o debate, eu solicitei aos participantes que saíssem da aula pois iríamos encerrar”.

Haviam cerca de 40 pessoas na live. Entre eles estavam professores e alunos de graduação e pós-graduação de diversas universidades. A situação acabou saindo de controle quando as ameaças começaram.

“Eles abriram os microfones e começaram a fazer insultos, ameaças. Queriam nos dar uma sensação de medo, diziam que invadiriam nosso IP, que se fizéssemos uma nova aula eles iriam derrubar de novo, que iriam pegar nossos números de cartão de crédito. Quando eles viram que todas as pessoas saíram da sala, eles celebraram e disseram ‘Conseguimos. Qual vai ser a próxima?”.

Em nota oficial, o reitor da UFSM, Paulo Burmann, repudiou o ocorrido e pediu para que a comunidade acadêmica redobre os cuidados com segurança e as práticas com mídias digitais.

Já no IFRS o caso foi no campus da Restinga em Porto Alegre. Em uma webconferência realizada no dia 9 de julho, um grupo ingressou no painel chamado Roda de Conversa: como funciona o racismo, um olhar de moradores da Restinga e começou a imitar sons de macaco, além de compartilharem uma tela com imagens pornográficas.

Segundo o IFRS, o diretor-geral do Campus Restinga, Rudinei Müller, realizou a denúncia no dia 10 de julho à Polícia Federal.

O link de acesso à atividade havia sido divulgado nas redes sociais do IF — Campus Restinga e do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (Neabi). Na live havia uma moderadora que expulsou os responsáveis assim que percebeu os ataques.

Através de nota oficial, o reitor do IFRS, Júlio Xanro Heck, repudiou o ataque e destacou:

“O compromisso institucional com a promoção de um ambiente educacional plural, diverso, democrático e inclusivo que, em hipótese alguma, pode ser confundido com a expressão de discursos de ódio”.

O Neabi e a direção geral do Campus Restinga também emitiram nota repudiando os ataques.

“Este tipo de ação não é, e não será, tolerada e estão sendo dados os encaminhamentos legais para averiguação e punição aos envolvidos pelas autoridades.”

Segundo o Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), de 2012 para 2016 a população negra aumentou de 16,2% para 18,2% no Rio Grande do Sul. Mas isso não impede que vários casos de injúria racial ocorram no estado, especialmente em cidades de interior devido a cultura europeia fortemente enraizada.

Conceito e Contextualização

De acordo com o Professor Doutor pela Universidade de Harvard em Direito Antidiscriminatório e autor do livro O que é Racismo Recreativo, Adilson Moreira, em entrevista à Carta Capital em dezembro de 2018, afirma que Racismo Recreativo é:

“Uma política cultural que utiliza o humor para expressar hostilidade em relação a minorias raciais. O humor racista opera como um mecanismo cultural que propaga o racismo, mas que ao mesmo tempo permite que pessoas brancas possam manter uma imagem positiva de si mesmas. Elas conseguem então propagar a ideia de que o racismo não tem relevância social. Não podemos esquecer que o humor é uma forma de discurso que expressa valores sociais presentes em uma dada sociedade”.

Na mesma entrevista, Adilson cita um dos ícones do humor brasileiro como exemplo de Racismo Recreativo: a Vera Verão.

Personagem caricato interpretado pelo ator Jorge Láfond, era uma das atrações do programa humorístico do SBT, A Praça é Nossa. O personagem trazia o estereótipo do gay escandaloso e travestido que estava sempre a procura de um parceiro sexual. Era muito amado pelo público brasileiro e, após a morte de seu intérprete, foi eternizado como um dos maiores personagens humorísticos que já passaram pela TV.

Apesar de toda a fama e carinho do público brasileiro, o personagem traz graves problemas, justamente por ser um emaranhado de estereótipos negativos que reforçam vários tipos de preconceitos, desde o racismo, passando pela homofobia e indo até a representação negativa da mulher negra. Adilson detalha isso na entrevista à Carta Capital:

“Primeiro, a degradação sexual de minorias sexuais. Toda a sua personalidade girava em torno da sua sexualidade. Encontrar parceiros sexuais era o único propósito de sua vida. Sempre fazia questão de enfatizar suas habilidades sexuais. Segundo, o personagem reproduzia a ideia do homem branco como único parceiro sexual socialmente aceitável, porque ela só se interessava por homens brancos. Terceiro, ela também expressava a noção de que todos homossexuais são afeminados e que todos os homens negros homossexuais estão à procura de homens brancos. Quarto, ela também reproduzia a imagem hipersexualizada da mulher negra porque ela se apresentava como uma mulher”.

Jorge Lafónd no papel de seu icônico personagem, Vera Verão. Fonte: (Divulgação/SBT).

Outro exemplo que podemos citar eram algumas esquetes do programa humorístico Casseta & Planeta, Urgente! que passava nas noites de terça-feira na Rede Globo. Atualmente, o grupo humorístico possui um site e um canal no YouTube, onde faz esquetes de humor.

“O humor tem sido estudado por especialistas desde a antiguidade. Havia um consenso até o início do século passado de que o humor produzia prazer nas pessoas porque ele sempre retratava pessoas consideradas como inferiores. Freud dizia que ele pode ser um tipo de expressão de animosidade em relação a grupos minoritários. Há vários estudos demonstrando que o humor tem sido utilizado ao longo tempo como um meio de manipulação política. Isso se torna possível em função da articulação dos estereótipos raciais presentes nas representações de minorias. Não podemos esquecer que o racismo recreativo tem um caráter estratégico: o uso de piadas não ocorre apenas para entreter pessoas brancas, mas sim para perpetuar a ideia de que apenas membros do grupo racial dominante podem ocupar posições de poder e prestígio. As crenças precisam persistir para que as hierarquias raciais sejam legitimadas. Pessoas brancas vão perder oportunidades quando vivermos em uma realidade na qual não existam estereótipos raciais. Elas terão que justificar a presença delas nos lugares. É por isso que elas estão tão empenhadas na degradação moral de minorias. Elas querem preservar suas vantagens injustas a qualquer custo”, salientou Adilson Moreira.

Situações vividas

Não temos números concretos sobre os humoristas negros no Rio Grande do Sul, porém sabemos que são poucos, mas fica menor se for considerado entre esses as mulheres. Fora do Brasil, nomes como Whoopi Goldberg, dos sucessos Mudança de Hábito e Ghost; Queen Latifah do filme As Férias da Minha Vida; Tisha Campbell da série Eu, a Patroa e as Crianças e Raven-Symoné de As Visões da Raven são conhecidos em todo o cenário internacional. Em solo gaúcho, a comediante e atriz, Nelly Coelho, é uma das poucas mulheres negras que trabalham no ramo aqui no estado, tornando o cenário mais complicado. Aos 31 anos, a atriz reside em Porto Alegre e atuou no grupo de Stand Up Comedy Tinha que Ser Mulher. Hoje trabalha como comediante e faz shows no Buteco Comedy Club de Canoas.

Nelly relatou algumas situações bastante desagradáveis que vivenciou ao longo de sua carreira.

“Participei do primeiro grupo de Stand-Up comedy feminino e era a ÚNICA negra do grupo. Cansei de chegar mais cedo para um show e os donos do bar que não me conheciam, não me atenderam até vir as outras meninas. Cheguei a ter uma piada minha questionada sobre “racismo reverso” ou colegas disseram que eu não deveria contar piadas sobre racismo, que não seriam aceitas”.

A humorista gaúcha também deu sua opinião sobre a forma de se fazer humor no Brasil, considerada uma das especialidades dos brasileiros.

“No Brasil, ao meu ver, é um humor popular, mesmo que às vezes seja confundido como humor chulo”.

Outro ponto também sempre discutido no âmbito das artes em relação ao racismo é a falta de representatividade negra na TV como um todo. Perguntamos a Nelly, como espectadora, se ela acredita que os negros são bem representados na mídia como um todo e a humorista nos disse que não e complementou, inclusive falando sobre o cenário humorístico:

“Ou a gente é empregada ou traficante. Assim, os pretos que não são isso, que passam na TRAMA TODA sendo discriminados e nada mais nas suas vidas importam. No humor é puro estereótipo e pronto. O jornalismo é o único lugar que nós aparecemos mais e ainda é pouco. Está bem difícil de se sentir representada na mídia”.

Antes da parada devido a Covid-19, Nelly já havia se apresentado em várias casas como o Porto Alegre Comedy Bar com o show Mamas Citas Comedy e no Garage 80, em Alvorada, com o espetáculo Elas que Comandam. Ela é atriz, cantora e decidiu ser comediante a partir de 2014, transformando o humor em uma grande arma na luta contra discriminação racial.

Foto de apresentação do show Mama Citas Comedy (Fonte: Reprodução/PortoAlegreComedy).

Ao ser questionada sobre o que poderia ser feito para acabar de vez com o racismo recreativo na sociedade, Nelly respondeu:

“Parar de levar na brincadeira e levar como crime! Racismo é crime, homofobia é crime! Começar a doer no bolso para assim doer na consciência”.

Foto de apresentação do show Elas Comandam. (Fonte: Reprodução/Garagem80).

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