O ensinamento que nos falta

Lu&Fran
Vidas negras no RS
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9 min readJul 16, 2020

Como a história afro-gaúcha tem sido contada nas salas de aula

Capoeira e a cultura afro-brasileira. Foto: Google Fotos significados.

Não obstante dos dias atuais se percebe que os estudos nas escolas do Brasil se apresentam pouco generosos em relação à trajetória dos negros. Pode-se dizer, além disso, que nossa grande diversidade estadual tem sido apagada nos bancos escolares do Rio Grande do Sul e mesmo que, sem intenção por parte dos docentes, a nossa história cultural brasileira segue sendo homogeneizada sob o olhar do colonizador europeu.

De acordo com essa visão está a professora de História, Lília Corrêa:

“Há uma grande supervalorização de Europeus e desvalorização da cultura Africana no mundo, mesmo sendo que o surgimento do homem tenha se dado neste continente. Na nossa construção social, o país não tem uma identidade própria, somos uma mistura de muitos. Entretanto, prevalece a mania de achar que o Europeu ou Americano são o centro do mundo.”

Isso se deve ao fato de que em nosso âmbito educacional a história acerca da nossa cultura gaúcha, desde sempre foi contada pelo patriarca: homem de pele clara, heterossexual, religioso, casado. Deixando então, desde o início, uma supremacia branca enraizada em nosso meio. Aprendeu-se história através da visão européia e, com isso, o negro foi posto no lugar do ‘outro’, como se fosse o coadjuvante do enredo. E assim, tudo aquilo que não era referente ao patriarcado, ficou por menos, por ser reconhecido como “os demais”. A partir daí, o mais confiável se tornou o mais próximo do colonizador e acabou-se assim por implantar o preconceito alinhado ao ensino.

A pequena parte contada

A história do negro no Brasil contada junto às escolas se vale, na maioria das vezes, apenas na descrição do período de escravidão, colocando-o na posição de inferioridade, de subordinado, mencionando superficialmente sua cultura afro-brasileira, suas tradições, peculiaridades e deixando de lado todas as suas contribuições para o estado e o país.

Gabriel Menezes, de 17 anos, está no terceiro ano do ensino médio e, prestes a se formar, relata que:

“A gente tem noção de que boa parte da cultura vem do negro, mas nenhum desses tópicos é abordado diretamente no colégio. A gente não tem, por exemplo, a cultura do samba, como o samba foi criado; a cultura do morro… Se fosse só pela visão do colégio, teria somente a ideia de que o negro foi escravizado e só teve aquele período. Mas fora isso, vem toda a visão social externa…”

No livro “Pequeno Manual antirracista”, a escritora e Mestra em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo, Djamila Ribeiro, menciona o seguinte fato: “Quando criança, fui ensinada que a população negra havia sido escrava e ponto, como se não tivesse existido uma vida anterior nas regiões de onde essas pessoas foram tiradas à força.” — indo ao encontro das palavras do jovem Gabriel.

O grande erro foi que escritores do século XIX acabaram por anular as peculiaridades dos diferentes grupos negros, e uma sociedade originalmente poliforma se desfez na homogeneização cultural. O desvio então se prosseguiu ao longo do século XX em salas de aulas, onde muitas vezes, se desconstrói uma identidade estadual baseada na mistura de raças e o fato de que a cultura que cerca seus habitantes é uma herança social provinda dos portugueses, italianos, espanhóis, índios e negros.

O desaparecimento das referências negras na história do nosso estado não é coincidência, mas parte de um processo de invisibilidade que atravessou os séculos: a intenção de criar a imagem de um “estado diferente”, no qual a miscigenação não teria acontecido, onde a escravidão foi mais serena e, consequentemente, a ideia de que os negros “nem sofreram tanto”.

O preconceito por trás do “gauchismo” enraizado

Houve uma abundância de autores que trataram de mostrar que o Rio Grande do Sul seria uma região composta majoritariamente por europeus. Estes mesmos escritores colocaram em prática certa tentativa de apagar a herança africana da memória coletiva durante a construção da identidade gaúcha. Escritores esses que acreditam que “um povo tão virtuoso” não poderia ter em sua linhagem histórica, pessoas que passaram tanto tempo sendo escravizadas. E, então, o apagamento da história foi se acentuando com o passar dos anos, gerando um completo imaginário sobre a raça negra.

“No nosso Estado, existe um Bairrismo muito forte, devido ao nicho criado em torno da figura do gaúcho, mais ou menos, na década de 30. Em sala de aula, ainda alguns professores (grande maioria) exaltam a figura do gaúcho até mesmo pela festividade do vinte de setembro (data da Revolução Farroupilha) que terminou com um acordo entre Estancieiros e Governo. A figura do Negro na revolução ainda causa debates e fúria sobre o episódio Revolta de Porongos e os Lanceiros Negros abatidos e traídos por um general. Em sala de aula, é muito importante trazer á tona a participação do Negro na luta ludibriado por ofertas que jamais seriam atendidas.”

O invisível gaúcho negro. Foto: Portal Geledes.

Lília também aponta o apagamento de outras etnias até na hora de retratar a figura do gaúcho em sala de aula, onde nos é apresentado esse arquétipo de homem branco dominante, de laço e esporas e, sem querer, o espelho dos preconceitos do povo que ele representa. Já que esse gauchismo desde criança nos faz entoar que o “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”, como trecho do Hino Rio-grandense.

Com base em diversas fontes documentais podemos nos aproximar da ideia de que realmente o número demográfico da população negra no Rio Grande do Sul foi alto. Porém, a falta de protagonismo nos livros de história causou o apagamento desses personagens, o qual se acentuou com o passar dos anos, indo de encontro à realidade dos fatos: a negação de que a presença negra na história do Rio Grande do Sul é muito forte e foi fundamental para que o estado chegasse a ser um dos mais importantes do país.

A questão é que fatores do tipo não viram debate em sala de aula, faltam não só educadores, como palestrantes que tragam pautas como essa para o âmbito educacional. E, mesmo reconhecida, não se fala também da importância fundamental dos negros na construção socioeconômica e cultural do Estado. E pode-se dizer então, que o processo de esquecimento da memória negra em solo gaúcho foi sistêmico e proposital, encontrando nas políticas de embranquecimento, que se baseava na ideia de supremacia branca, as condições perfeitas para que se pudesse pouco a pouco esquecer de seu passado negro.

O embranquecimento como forma de ensino: onde estão os autores e personagens negros?

Em âmbito nacional pode-se citar como exemplo dessa teoria, um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, e também um dos principais: Machado de Assis. O qual, não só poderia como também deveria ser abordado em sala de aula de inúmeras formas. Os livros do maior autor negro brasileiro não são obrigatoriedade no currículo escolar e, além disso, embora o ‘conheçam’, a grande maioria não faz ideia da trajetória e raça do escritor. Gabriel é mais um desses exemplos: “Ele era negro?!”. Questiona e exclama surpreso com o fato, o aluno do ensino médio relata que:
“[…] não sabia que ele era negro e não conheço nenhum livro dele.”

Machado de Assis sendo disputado por suas duas ‘possíveis’ raças. Imagem: O ferrão.

Machado de Assis era bisneto de escravizados e nascido no Morro do Livramento e até hoje tem sua imagem ligada a estereótipos brancos. Um exemplo deste “branqueamento” é visível até fora da sala de aula, como em uma propaganda da Caixa Econômica Federal, na qual um ator de feições europeias foi o escolhido para representá-lo.

Um dos maiores nomes brasileiros é negro e tem sua história “branqueada” e apagada no ambiente educacional. E casos como esse levam à reflexão sobre a falta de estudos a partir de influências negras.

Ao ser questionado sobre o conhecimento de algum personagem negro que tenha tido um papel importante para o Brasil, Gabriel ainda relata que tirando Zumbi dos Palmares não sabe de nenhum outro.

“O único que ‘vi’ e, mesmo assim, somente por um trimestre, nem isso… tendo sido ele tratado como um personagem secundário, apenas. Tenho então uma breve ilusão do que realmente ele foi: quem libertou os escravos.”.

Não é à toa que o 20 de novembro, data incluída no calendário escolar como Dia Nacional da Consciência Negra, tem sua história apagada nos bancos escolares. Pois muito se fala sobre consciência, porém pouco sobre seu gatilho e seus historiadores. A data em questão faz menção ao maior herói do movimento negro brasileiro: Zumbi dos Palmares, escravo que liderou um quilombo em Alagoas. O qual teria sido assassinado, em 20 de novembro de 1695. Mais um caso apresentado para reforçar a ideia de que enredos, objetos, exemplos, figuras, autores, não faltam para serem discutidos em sala. Então, onde estaria o erro? Por que os personagens negros são esquecidos pelo tempo?

Para a professora Lília, o erro estaria na falta de interesse por parte dos docentes, apenas. Pois, segundo ela, não há dificuldades no acesso a pesquisas e publicações a respeito do assunto. E com isso: “Poucos autores negros são estudados. Poucos professores se interessam.”, relata a educadora. O que priva o ensino de uma didática objetiva e impulsionadora de mudanças, amparada por assuntos diversificados.

São estes mesmos objetos/materiais disponíveis em bibliotecas e acervos estaduais que poderiam nos fornecer um quadro aproximado do que foi a organização social, política e cultural da comunidade negra gaúcha, a qual esteve sempre na tentativa de superar as condições adversas em que se encontrou no passado, e ainda busca superar no presente.

Apesar de ampla, a história do nosso país fez-se singular e a cultura africana nunca possuiu o valor devido. Isso se deve à ausência da conscientização de que o negro foi de suma importância para a história do nosso país, e mais ainda, especificadamente, foi a construção da identidade dos gaúchos que vivem nas mais diversas regiões do estado.

O fato é que a cultura afro-gaúcha é a de todos que vivem no Rio Grande do Sul e deve ser preservada e reconhecida, deixando de ocupar essa posição quase que imperceptível na área educacional. Paralelamente, a cultura do racismo na educação alimenta-se do que já é, então, se faz necessário ir na contramão da rejeição às mudanças. É preciso buscar desbloquear o conhecimento e a imaginação de jovens, para que se conceba e se vivencie, de fato, a cultura da consciência negra na escola e não só como uma data do currículo acadêmico.

Gabriel não sabe de nenhum autor negro estudado em sala de aula ou que deveria ser… E segue acreditando que “os portugueses foram os personagens mais importantes na nossa colonização.”.

O único culpado nisso tudo é o próprio ensino, pois a falta de conhecimento e noção para sua aplicação didática tem estagnado a progressão da transmissão de conhecimentos da cultura africana no âmbito educacional.

Segue sendo um desafio e tanto para os educadores trabalharem a cultura africana na sala de aula, segundo a mestre em história, Lília: “Não há resistência por parte dos pais e alunos em relação ao ensino da Cultura Africana, pois já se trabalha também com a cultura indígena e européia.” O que nos leva então a um único fator como empecilho: a formação dos docentes.

A educação e o consequente racismo

A negligência no âmbito educacional a respeito da cultura africana pode ser considerada um dos fatores para a propagação do racismo em nossa sociedade?

“Sim, pode. Temos que entender que fazemos parte de uma sociedade racista, estruturalmente racista, e precisamos dialogar a respeito disso, pois silenciar é se tornar responsável pela manutenção e alimentação desse sistema.”, defende Lília.

A ausência de um debate racial no campo da educação traz o silêncio para perguntas sem respostas; para histórias mal contadas; para personagens sem início, meio e fim; para seres humanos que ficaram resumidos a escravos. O silêncio então não ensina; não defende; não muda a realidade de uma sociedade que não se diz racista, mas que trata o racismo como algo estranho a educação. O silêncio faz neutralizar injustiças e cria estereótipos de inferioridade. O silêncio traz dúvidas não sanadas, inquietações e o “não pertencer” a realidade criada, contada e repassada geração após geração.

“Bem a crença do não pertencimento, você não se vê representado em lugar algum. Um exemplo: em década atrás, você não via uma Boneca Negra, por exemplo. Se você quisesse uma teria que fazer de pano. Não havia nada que nos enaltecesse de alguma forma e isso é muito pernicioso.” — confirma a professora: uma mulher negra, formada em história, que da aulas em uma periferia.

Pois então, sempre haverá uma Lília, um Gabriel, uma Maria, um João e toda uma sociedade com o direito de saber mais e falar mais. Sempre haverá também um pequeno negro em sala de aula esperando que a história de sua raça seja contada, mas sem omissões, sem minorias, pois ele dependerá dela não só para ter conhecimento, para passar de ano letivo, para ir para a universidade… Ele dependerá dessa história e da forma que ela será retratada para poder viver em paz. Pois, esse pequeno negro sabe, e nós (lá no fundo) também sabemos que se não fosse o ensino e a consecutiva educação, o racismo jamais teria como se reproduzir.

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Lu&Fran
Vidas negras no RS

Estudantes de jornalismo que escrevem umas matérias de vez em quando.