A história do Carnaval

Como uma festa tipicamente católica se tornou o principal sintetizador da cultura brasileira.

Marcelo Campos
Vinte&Um
8 min readFeb 8, 2018

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foto retirada deste endereço às 11:39h do dia 05/02/2018.

O Carnaval chegou. Sim, para muitos a mais aguardada data do ano já está espreitando no calendário. Oficialmente são quatro dias de festa e um de descanso, mas a tradição católica há muito foi deixada para trás e o feriado, marcado por ser quarenta dias antes da Páscoa, se tornou um fenômeno nacional.

Porém, algo nessa complicada interseção entre Estado, Igreja e Cachaça ainda não ficou completamente clara. Em qual momento da nossa história nós, brasileiros, olhamos um para o outro e combinamos: “Ei, semana que vem a gente trabalha. Agora bora beber o suficiente pra gente ir a pé até Ouro Preto e não saber exatamente como chegamos lá?” E em seguida escutar uma resposta rápida do seu amigo: “Achei que você nunca fosse me perguntar isso, meu irmãozinho”.

A festa católica

Um exemplo de carnaval medieval. They knew how to throw a party. Retirada deste endereço às 12:23h do dia 05/02/2018.

O Carnaval surge como uma festa católica para celebrar a vida, uma última grande noite antes do sacrifício da quaresma. Copiada de outras diversas culturas e religiões, inclusive de uma festividade grega chamada Bacanal, a folia era condenada pela Igreja, que tratava o período anual como “devastação diabólica”. Era organizada tipicamente pelos fiéis que queriam vivenciar um período de extravagância antes de se entregar completamente às tradições religiosas da quaresma. Contudo, existia um simples problema: poucos eram os fiéis que respeitavam o começo da quaresma e era comum que as festividades se estendessem durante todo o mês de fevereiro.

Restou ao Papa Gregório Magno (590–604) tentar organizar a baixaria. Ficou definido que as festas pagãs poderiam ocorrer até terça-feira e, um dia depois, o jejum da quaresma se iniciaria. Essa atitude foi a primeira grande ação que a Igreja tomou no sentido de tentar cristianizar a festa. Além disso, durante o período medieval, era típico utilizar máscaras que zombassem da realeza, dos vassalos do rei e, por que não, do Papa. Nada muito diferente de hoje.

A festa foi se tornando cada vez maior e se espalhou pelos diversos cantos da Europa. Eventualmente, esses pequenos reinos se tornariam os primeiros estados-nação, o período colonial se inciaria e seria questão de tempo até a festa europeia se tornar latino-americana. E foi um pouquinho depois que, em uma dessas colônias, um novo gênero musical surgiria. A festa tomaria proporções, bem… proporções bíblicas. E a tradição, que nunca foi tão católica assim, se desprenderia quase que completamente do seu passado medieval. Era a hora do Brasil. Era a hora do Samba.

As primeiras festas mais brasileiras do que católicas

Os primeiros blocos tinham que comprar sua fantasia em algum lugar, e era na Casa Turuna, no meio da Feira do Saara, que os foliões se encontravam. Foto retirada deste endereço às 12:50h do dia 05/02/2018.

Deixa Falar. Se algum dia você já se perguntou qual foi o nome da primeira Escola de Samba do Brasil, bom, “Deixa Falar” era o seu nome. Fundada em 12 de agosto de 1928, a Escola já se apoiava nos ombros de gigantes já existentes. Em ‘28, o Samba Urbano já tinha mais de doze anos de idade. “Pelo Telefone”, a primeira composição de Samba a ser gravada, já havia sido hit de carnavais passados e já não tinha tanta influência no cenário musical da época.

Em vez de sambas cadenciados e temáticas urbanas, a Deixa Falar iniciaria uma nova era na música brasileira. O batuque, típico dos escravos africanos e de algumas tribos indígenas, ganhava contornos velozes que aumentavam o dinamismo dos desfiles. Para narrar uma história em cima desse ritmo frenético, surgia o Samba-Enredo. Apesar de por vezes tratar de temas urbanos, o novo estilo se especializava em contar a história de grupos sociais tipicamente excluídos das principais páginas dos livros de história. Era a vez do Malandro narrar a história através dos olhos do povo.

Porém, mais popular do que isso — e acompanhando a história do Samba — surgiam, no Rio de Janeiro, os primeiros Blocos de Carnaval. Organizados pela massa da população nas décadas de 1910/1920, eram condenados pela elite intelectual como uma festa de pobreza cultural e antro de delitos e malandros. Porém, ao mesmo tempo que a festa era condenada, os políticos e intelectuais da década de ’20 enxergavam uma oportunidade única de se criar uma cultura nacional ufanista baseada no Carnaval.

Enquanto a Bahia, Maranhão e Pernambuco criavam o seu próprio estilo de Samba, simultaneamente ao Rio de Janeiro, observava-se uma chance para o Governo Federal patrocinar o gênero e torná-lo digno da Elite Cultural higienizada do país. Restou ao nosso primeiro ditador, fascista por definição, a tarefa de intervir no futuro cultural do Brasil.

E no sétimo dia, Getúlio criou o Carnaval

O glamour dos bailinhos de carnaval. Quem lembra quando confete era mais importante que o glitter?

Apesar dos primeiros desfiles ocorrerem informalmente em 1933 e 1934, quando a Estação Primeira de Mangueira foi tricampeã dos três primeiros carnavais, o Governo Federal resolveu oficializar o desfile das Escolas de Samba na Avenida Presidente Vargas em 1935. Era o que o Carnaval precisava para alçar vôos maiores na cultura nacional. A cada ano as Escolas se profissionalizavam. Informalmente, os blocos continuavam arrastando multidões. A elite guiava o destino cultural do Brasil e o povo festejava suas festas.

As consequências dessa intervenção vieram anos depois, quando o Samba abriu espaço para a Bossa Nova da Zona Sul — movimento musical que fundia o Jazz e o Choro e projetou a cultura brasileira internacionalmente durante a Doutrina Truman. Enfim os intelectuais de esquina conseguiram raptar as rédias culturais e estávamos prontos para viver algumas décadas de música de classe-média alta feita para classe-média alta.

O surgimento dos bailes de carnaval foram a resposta higienizada das altas classes sociais aos blocos das décadas de ‘30, ‘40 e ’50. Ambientes tipicamente familiares, ajudaram a trazer o espírito de respeito aos carnavais, mas, nesse processo, sacrificaram o encanto da multidão. Os blocos não haviam sido proibidos, mas certamente eram cada vez mais mal vistos pela população em geral.

Apesar da tentativa da Tropicália de devolver a cultura popular ao povo no final da década de ’60, tratava-se ainda de um movimento necessariamente elitista, que acabou não sendo bem sucedida em seu objetivo. Seria necessária uma democratização política e social a nível nacional para o Carnaval voltar às ruas e ao clamor geral. Fazia-se necessária uma revolução cultural.

Entrávamos na década de ’80. O Rock Nacional — baseado na New Wave e no Post-Punk inglês — dominava as paradas musicais em todo o Brasil. O país vivia um boom populacional que, juntamente com o caldeirão cultural, iria trazer mazelas sociais e problemáticas modernas dignas de países africanos. Mas era hora. Era a hora de a música voltar a ser feita pela classe baixa para as classes altas. Era a hora de voltarmos ao começo do século. Era a hora de democratizar o Carnaval em um país de duzentas milhões de pessoas. Era a hora do Pagode, do Samba, do Funk, do Axé e do Forró. Eram os anos 90, e se você tinha dançarinas semi-nuas dançando sua música em um programa de auditório seria questão de tempo até sua música se tornar o novo hit do carnaval.

Renaissance do carnaval massificado

Achou que eu não ia usar termo tipicamente erudito pra designar o carnaval? Achou errado, otário. Ah, foto retirada daqui no dia 05/02/2018 as 11:43.

Apesar de ter sido gestada no final dos anos 80, foi no começo dos anos 90 que a música — de origem tipicamente brasileira — voltou a se tornar massificada. O Pagode começava sua Era de Ouro, logo após passar uma década sendo devidamente esculpido por grandes mestres tais como Jorge Aragão, Martinho da Vila e o Fundo de Quintal. Enquanto isso, na Bahia, o Axé aparecia como a resposta popular ao envelhecimento natural dos compositores baianos da Tropicália. O funk, que demorou alguns bons anos para florescer como música carnavalesca, começava a aparecer nas favelas cariocas em uma mistura, ridiculamente brasileira, de um single do Afrika Bambaataa, “Planet Rock” com a levada funkeada de James Brown (mas isso definitivamente é história para outro texto). E lógico, nesse caldeirão não podemos esquecer do papel importantíssimo que o Forró teve em massificar a festa carnavalesca no resto do Nordeste.

Por trás de todos os novos gêneros, um velho amigo: O Samba, especificamente o típico de enredo, carregava a trilha sonora dos desfiles das escolas, aquelas que no começo da nossa história criariam os carnavais modernos.

Indo além! O Carnaval não era mais do Samba. O que havia surgido nos anos 90 era mais forte do que isso. A festa havia se tornado uma manifestação tão plural e tão geral que não havia estandarte grande o suficiente para colocar todos sobre o mesmo bloco. E foi aí, nesse instante, que nasceu o Carnaval de 2018.

Sim, isso mesmo. Os seus próximos dias serão um oferecimento de três instituições aperfeiçoadas no decorrer dos carnavais dos últimos quinze anos: I) Pluralidade social; II) Pluralidade cultural; III) Facebook. Sim, Facebook. Imagine você no Carnaval de 1993, quando meu pai e minha mãe se conheceram por acaso em um bloco. Sua única chance de se programar para ir aos blocos era comprando O Globo em dia de Caderno Cultural, ou de forma mais prática, pelo boca-a-boca dos amigos. Ambas as maneiras eram extremamente ineficientes e, justamente por isso, o carnaval de rua demorou a engrenar novamente.

O Facebook, dentre inúmeras raivas que já nos fez e faz passar, facilitou a nossa comunicação. Hoje, após vinte minutos de pesquisa na rede social, com um calendário ao lado, é possível montar o cronograma completo do seu carnaval. Também é possível encher o saco dos seus amigos para te acompanharem no bloco, avisar para aquele match do Tinder onde você estará e, lógico, tornar público para sua mãe exatamente onde você estará extremamente alcoolizado.

O resultado do caldeirão cultural é simples: todas as ideias e qualquer coisa ao mesmo tempo agora. São blocos homenageando vídeos de youtube, fantasias de memes, músicas de memes se tornando o hit do carnaval, blocos de funk, blocos de eletrônica, blocos até mesmo em homenagem aos Beatles e ao Super Mário (sim, aquele Mário). Após mais de cem anos de festa popular, o Carnaval enfim conseguiu se tornar uma festa verdadeiramente plural, e que convenhamos, vem se tornando cada vez mais respeitosa a cada ano.

Vivemos um Carnaval plural. Dentre intervenções estatais, higienizações sociais e massificações culturais; passamos, quase sempre intactos, por cinco dias de festa todo ano. Ame ou odeie a data, ela existe. É por causa dela que você foge para o Festival de Jazz na serra. É por causa da folia que você inventa dados econômicos que supostamente apontam que o Brasil só está em crise por causa do Carnaval. E, mais importante, é por causa dela que existe uma identidade cultural forte em bater no peito e dizer que se é brasileiro.

Se os Norte-Americanos precisam do Thanksgiving e do 4th of July para relembrar como é bom ser americano, nós, brasileiros, só precisamos de cinco dias no ano, as vezes até mais, vai; para perceber que os Novos Baianos há muito estavam certos:

Minha carne é de carnaval,
Meu coração é igual.

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Marcelo Campos
Vinte&Um

Relatos pessoais narrados por uma voz dentro da minha cabeça.