A politização do Judiciário mostra que, como de costume, os jornalistas precisam estudar mais

Fernando Luis Teles
Vinte&Um
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4 min readNov 22, 2017
Os juízes federais Marcelo Bretas e Sérgio Moro, heróis da imprensa por descumprir as leis para punir os descumpridores de leis

Em 1995, C. Neal Tate e Torbjörn Vallinder nomearam como “judicialização da política” um fenômeno que mais tarde se disseminaria a ponto de ganhar o cotidiano dos jornais e até alimentar conversas de bar. Trata-se da expansão de métodos judiciais para a decisão de temas tradicionalmente típicos das esferas legislativas. Como lembra o cientista político Ernani Rodrigues de Carvalho, ao fazer a revisão de decisões do poder político, o Judiciário ampliaria seus domínios diante dos demais poderes. Os defensores desse processo alegam que os juízes, por se isolarem dos ventos inconstantes da opinião pública, que não raramente esmagam as minorias, seriam capazes de promover o verdadeiro encontro de um povo com seus valores mais frutíferos positivados num texto constitucional.

Muitos cientistas sociais, no entanto, apontaram ao risco de que esse cenário levasse não apenas à judicialização da política, mas também à politização da justiça. A abertura do mundo do Direito aos temas políticos tornaria possível uma corrupção sistêmica das instituições jurídicas. Não há como, por exemplo, ver um ministro do Supremo Tribunal Federal como um juiz imparcial, neutro, quando se exige que ele se posicione claramente sobre as questões mais polêmicas de uma sociedade, exibindo seus valores pessoais; quando se exige que ele interaja diretamente com a opinião pública; e, pior, quando o perfil de um magistrado é reduzido para ser encaixado em classificações superficiais, quando não maniqueístas, tais como “Direita x Esquerda”.

No Brasil, a judicialização da política foi vista por muito tempo com bons olhos. Destacada por um caráter ao menos aparentemente progressista, esteve vinculada a decisões como a permissão de pesquisas com células-tronco, o reconhecimento da legitimidade dos sistemas de cotas nas universidades, a expansão do direito à união civil entre pessoas do mesmo sexo, a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos, entre outras. Mais recentemente, tamanha participação dos tribunais no debate público levou à popularização do processamento de ações penais. É o caso do julgamento do Mensalão e de questões ligadas à Operação Lava Jato. O Judiciário ganhou, naturalmente, o status de instituição voltada à luta contra a corrupção.

A politização tornou-se, enfim, evidente. Uns desconfiam dos ministros do STF nomeados durante os 13 anos de governo petista; outros acusam o ministro Gilmar Mendes de representar os interesses do PSDB. Uns vêem Sérgio Moro como um herói que passa o país a limpo; outros enxergam em sua atuação uma perseguição a Lula. E por aí vai. Os critérios de avaliação de uma argumentação racional-jurídica são cada vez mais deixados de lado. Os atos dos magistrados inundam o cotidiano das redações dos jornais. E os jornalistas têm se mostrado pouco preparados para isso. Ainda operam num roteiro de construção de personagens que não comporta complexidades inerentes à aplicação responsável das leis.

É nos temas em que a opinião pública é mais sensível que a fragilidade intelectual da imprensa, com raras exceções, fica evidente. No caso das medidas cautelares contra o senador Aécio Neves, só para ilustrar, é cristalina a determinação constitucional de que deputados e senadores só podem ser presos por flagrante de crime inafiançável (Art. 53, § 1º). O STF, em decisão controversa, aplicou a Aécio medidas cautelares, como o recolhimento domiciliar noturno. De todo modo, ainda que se tratasse de flagrante de crime inafiançável (o que não se verificou), determina a Constituição que a prisão seja resolvida pela maioria dos votos dos membros do Senado, que, nesse caso, revogou as medidas — com o consentimento do próprio STF, diga-se. É uma regra baseada num princípio forte: ao prender um parlamentar, não se restringe apenas a sua liberdade, mas a representação democrática. O ato, de maneira coerente, só caberia a outros igualmente dotados da bênção do voto popular, o que não é o caso dos magistrados. A imprensa viu somente o absurdo da impunidade de um corrupto, sem reflexões mais profundas.

Nos últimos dias, o caso de Aécio foi apontado como responsável pela possibilidade de soltura de Edson Albertassi, Paulo Melo e Jorge Picciani, por decisão da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Wálter Maierovitch, respeitado comentarista de Justiça e Cidadania da Rádio CBN, acusou a ministra Cármen Lúcia de tomar uma decisão “de natureza subalterna” por dar o voto que confirmou a prerrogativa dos senadores de decidir sobre seus semelhantes. Acontece que a “jurisprudência Cármen Lúcia”, como chamou Maierovitch, também é reflexo de regra constitucional que estende aos deputados estaduais as garantias dos deputados federais (art. 27, § 1º). Há decisões mais antigas sobre isso, não sendo culpa da jurisprudência recente. A prisão de Picciani e seus comparsas, determinada pela justiça federal, não se baseou em flagrante de crime inafiançável. Os deputados estaduais, portanto, apenas cumpriram a Constituição. A ética, evidentemente, pode se desprender das leis e vice-versa. Mas o cumprimento delas por agentes públicos, sobretudo por parlamentares, num Estado democrático de Direito, não pode ser definido como falta de ética. Não se trata de impunidade. Se vemos Picciani como bandido, é porque ele descumpriu as leis. Não podemos puni-lo senão a partir do cumprimento delas. Essa sim é uma exigência ética.

A imprensa precisa estar ciente dessa nova situação em que juízes e políticos — e membros do Ministério Público, não se pode esquecer — atuam num mesmo campo. As autoridades do Direito não são mais limpas e nem acumulam menos privilégios imorais. Elas são parte de um sistema oligárquico frequentemente irresponsável e pouco fiel às leis que juraram cumprir. Os jornalistas, enquanto não se qualificarem nesse sentido, continuarão a promover desinformação; continuarão contribuindo para que o debate público se mantenha superficial, incoerente e nada saudável ao Estado de Direito.

Fernando Luis Teles é cientista político e mestrando em Teorias da Comunicação pela Universidade de Brasília.

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Fernando Luis Teles
Vinte&Um

Bacharel em Ciência Política e mestrando em Teorias da Comunicação pela Universidade de Brasília. Intrigado pelos efeitos da tecnologia no mundo social.