A teoria política de Thomas Hobbes em The Last of Us

Uma leitura hobbesiana do mundo pós-apocalíptico

Guilherme Pires de Mello
Vinte&Um
14 min readSep 22, 2021

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Por Guilherme Pires de Mello

contém spoilers de The Last of Us (2013) e The Last of Us Part II (2020)

The Last of Us Part II (2020)

“É tão escuro”, disse Ellie, sentada no canto da sala mal iluminada de um apartamento abandonado após observar, pelo que parecem ter sido horas a fio, o que há além dos muros da zona de quarentena de Boston, nos Estados Unidos, 20 anos após a queda da civilização. Uma civilização que ela não chegou a conhecer.

Lá fora, no breu impenetrável, homens vivem uma vida solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta. “Eu nunca estive tão perto do lado de fora”, afirmou num misto de encanto e insegurança. “Não pode ser tão pior lá fora… Pode?”

O mundo pós-apocalíptico visto em The Last of Us (2013) não é dos mais acolhedores possível, mesmo da segurança de um complexo militar isolado, sem cadeia de comando externa e desconectado de um governo central que não existe mais.

Na história, o fungo Cordyceps, gênero dos ascomicetos, que no mundo real afeta basicamente insetos e outros seres artrópodes, desenvolveu uma nova variante capaz de afetar e controlar o cérebro de humanos, transformando-os em estaladores. Em outras palavras, temos a desculpa necessária para se investigar a natureza humana em um mundo pós-apocalíptico infestado por zumbis controlados por um fungo.

Como resposta à pandemia iniciada em 2013, os governos civis estabelecidos impuseram quarentena a todos os cidadãos, restringindo viagens e implementando medidas sanitárias para controlar a infestação. Logo, os hospitais começam a ficar apinhados de doentes e mortos. Corpos tiveram que ser empilhados nas ruas. Relatórios secretos da Organização Mundial de Saúde (OMS) vazados pela imprensa mostram que os testes de vacinação continuam falhando.

O pânico instalado enquanto a civilização colapsa precipita um golpe militar que dá poder a FEDRA (Agência Federal de Resposta à Desastres), composta por militares e responsável pela implementação de lei marcial nas zonas de quarentena. O nível de militarização e hierarquização da sociedade nos anos que se passaram após a infestação inicial levou um grupo de guerrilheiros idealistas, intitulados Vagalumes, a se rebelar contra as lideranças fascistas representadas pela FEDRA. Seu objetivo é a restauração do governo civil e das instituições democráticas. 20 anos depois, a civilização como conhecemos não existe mais.

O jogador controla Joel Miller (interpretado por Troy Baker), um pai que perde a filha, Sarah (Hana Hayes), de 12 anos, no auge do apocalipse, e, 20 anos depois, vive como contrabandista na zona de quarentena de Boston. Joel conhece bem o que sobrou para além dos muros: estaladores à espreita, bandidos e assaltantes de toda sorte de tocaia, canibais, estupradores ou coisa pior, muito pior, mas é convencido pela sua companheira Tess (Annie Wersching) a completar um serviço para Marlene (Merle Dandridge), a líder dos Vagalumes — ou do que restou deles. Sua missão é contrabandear para a cidade de Salt Lake, em Utah, um pacote falante e agitado de 14 anos: Ellie Williams (interpretada por Ashley Johnson), a única pessoa que se tem conhecimento imune ao fungo, cuja semelhança com sua filha morta há 20 anos é evidente.

Estado de Natureza entre os primeiros (e os últimos) de nós

Mas onde entra nessa história o teórico inglês Thomas Hobbes (1588–1679)?

Um dos autores mais notáveis do pensamento político, Hobbes procura, como um autor do Iluminismo prematuro, justificar a existência do Estado a partir de bases científicas da razão e do consentimento, como maneira de estancar a guerra civil que assolava a Inglaterra no século XVII e de garantir uma vida mais confortável.

Ellie e Joel em The Last of Us (2013)

Hobbes rompe com as justificativas espirituais do poder do soberano, estabelecendo no consentimento entre as pessoas através da razão sua legitimidade. Ou seja, para evitar a morte, o medo e as incertezas de uma sociedade sem Estado — o que Hobbes e outros teóricos chamam de Estado de Natureza — é racional delegar sua autoridade a um soberano absoluto a fim de manter a estabilidade e a paz entre os súditos.

O Estado de Natureza é caracterizado pelas suposições recíprocas de que o outro está sempre disposto a matar para conseguir algo que queira ou por pressupor que está prestes a ser atacado, legitimando o seu ataque. Em razão da inexistência de um juiz comum, o Estado, capaz de garantir a segurança de todos, é razoável — e racional — pressupor a violência, estabelecendo, portanto, a guerra de todos contra todos: o Estado de Natureza.

A justificativa racional para a consolidação do contrato de consentimento em serem governados por uma autoridade absoluta (seja pelo monarca, uma oligarquia ou mesmo do povo) é uma ferramenta teórica que nos ajuda a compreender a atuação de alguns atores e grupos na ambientação do jogo, uma vez que, com o fim do Estado nacional, e por conseguinte, a sociedade, estaríamos entregues a cenário semelhante ao descrito pelos teóricos do Estado de Natureza.

Para Hobbes, o Estado é o pressuposto para a existência da sociedade. É por presumir que a sociedade vem do Estado, e não ao contrário, através de um contrato, que Thomas Hobbes é considerado um dos mais expoentes teóricos do contratualismo, rompendo com a tradição holista de Aristóteles, para quem o Estado seria proveniente das partes.

No Estado de Natureza, pré-contrato, ou, no caso da ambientação apocalíptica, pós-contratualista, a lei é o direito de natureza, ou jus naturale, tendo o indivíduo o direito de usufruir de sua liberdade (entendida como liberdade de restrição) para usar a própria força de maneira a garantir a sua preservação. O contrato, portanto, consiste em renunciar a esse direito em benefício do Estado, transformando as leis naturais em leis civis.

Caminhando pelas ruas cercadas de Boston, podemos conferir como o poder estabelecido e a lei marcial foi capitulado por parte dos seus moradores, que vivem sob o punho de ferro dos militares, obrigados a conviverem com tickets de meia-ração e controle rígido de trânsito entre as zonas da quarenta. Tudo, a princípio, legitimado pela obediência ao Estado, como um eco da civilização passada. Todas as as intempéries são diminutas se comparadas com a vida “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta” para além dos muros, como Hobbes descreve o Estado de Natureza.

Ora como hipótese contrafactual, ora como situação real da vida primitiva nas Américas, o Estado de Natureza é um importante conceito para a Teoria Política moderna. Hobbes o desenvolve em Leviatã ou Matéria, Palavra e Poder de um Governo Eclesiástico e Civil, publicado em 1651, onde, a partir de uma perspectiva antropológica fundamentalmente negativa e pessimista sobre o ser humano, justifica a delegação da autoridade para um poder soberano, uno e ilimitado, capaz de assegurar a paz e o equilíbrio das forças, atuando como juiz imparcial.

Sua antropologia pessimista se afasta da concepção aristotélica do homem como animal político, ou zoon politikon, e sustenta a máxima “homo homini lupus” (o homem é o lobo do homem), originalmente atribuída a Plautus (254–184 a.C.) e difundida por Hobbes em Do Cidadão, em 1642.

Conforme Pedro Villas-Boas (2008, p. 62–63), professor do Iesp-Uerj, “a máxima [de Hobbes] (…) tem dois significados: o primeiro se revela na situação na qual a ausência de Estado pode tornar nossos limites tênues a ponto de podermos agir com a agressividade de lobos diante dos outros. O segundo significado deixa claro que também somos lobos de nós mesmos e a fragilidade de nossos limites internos eleva a propensão à autodestruição mediante as próprias paixões”.

Para o teórico inglês, o homem é marcado por três características perenes e com capacidade de gerar discórdia e, portanto, a guerra: a competição, a desconfiança e a glória. A primeira visa o lucro, a segunda a sua segurança e a terceira sua reputação. Todas as três são paixões humanas capazes de gerar dissenso no Estado de Natureza quando quando não há um interlocutor comum com poder de coerção incontestável.

Joel Miller, como apresentado em The Last of Us (2013), vivendo como contrabandista e embrutecido por 20 anos de sobrevivência, tendo cometido inúmeros crimes, demonstra encapsular perfeitamente a antropologia de Thomas Hobbes.

Apesar de sua vida pacata e ordeira como carpinteiro em sociedade, Joel foi capaz de se tornar um assassino cruel e sem remorso no Estado de Natureza pós-apocalíptico, reverberando perfeitamente a antropologia pessimista de Hobbes, que vê todo homem como um “assassino em potencial”. Soma-se a isso a igualdade inerente à concepção do homem hobbesiano e temos um cenário aterrador de incertezas quanto à sobrevivência de qualquer um.

Somos introduzidos a nova personalidade do protagonista envelhecido numa caça ao comerciante de armas Robert (Robin Atkin Downes), que teria passado a perna na dupla Joel e Tess, e vendido sua carga de armas para os Vagalumes. Joel e Tess conseguem extrair essas informações após uma sessão de tortura seguida de sua execução sumária, sem qualquer remorso, deixando claro que os dois falam perfeitamente bem o idioma das ruas e o que é preciso ser feito para sobreviver nesse mundo. A paranóia de Joel fica evidente quando Marlene propõe o serviço de transporte da jovem Ellie em troca das armas. A necessidade de se cruzar metade dos Estados Unidos, no Estado de Natureza permanente de todos contra todos (bellum omnium contra omnes) que reina além dos muros da zona de quarentena de Boston, em busca da suposta base de Vagalumes remanescentes, onde poucos médicos idealistas ainda tentam criar uma vacina, 20 anos depois do colapso da civilização, não lhe soa como uma proposta promissora a princípio.

Joel parece encontrar em sua aventura personagens que incorporam versões mais radicais e arquetípicas de cada paixão humana descrita por Hobbes apenas para, ao final, subverter sua premissa em benefício de um desfecho positivo e otimista. Tess demonstra idealizar o lucro acima de tudo, até ser infectada e passar a apostar todas as suas fichas na salvação da humanidade, antes de morrer fuzilada pelas forças FEDRA. Bill (Con O’Neill), amigo contrabandista, se perdeu em sua paranoia ao viver sozinho numa cidade infestada de armadilhas e, mesmo assim, se dispõe a ajudar Joel e Ellie. Por fim, Ellie encontra David (Nolan North), um homem aparentemente bem intencionado e de fala mansa que deseja ganhar a confiança e o respeito de Ellie acima de tudo, antes de se revelar um pedófilo e canibal disposto a matá-la caso ela lhe rejeite.

Alternativamente, podemos sugerir que, para além do idealismo, os Vagalumes almejam a glória de restabelecer o governo civil e estão dispostos a sacrificar Ellie, como vemos no final do primeiro jogo, para extração de seu cérebro com o objetivo compreender melhor a mutação que o fungo causou na hospedeira, como uma última tentativa de gerar uma vacina.

Joel, movido pela sua paixão humana, seu amor paterno reavivado, e o desejo de garantir a segurança de Ellie, os impede, executando os médicos responsáveis pela pesquisa e operação — dentre eles o Dr. Jerry Anderson (Derek Phillips), o único médico vivo capaz de criar uma vacina — e Marlene, a líder do grupo. Quebrando a espinha dorsal dos guerrilheiros idealistas que tentavam restabelecer o Estado de Direito democrático perdido com a queda da civilização pela promoção da vacinação universal, por amor a sua nova filha adotiva, depois de cruzarem o país inteiro juntos.

Quando questionado por uma Ellie ainda se recuperando do efeito da anestesia, Joel mente a respeito do que aconteceu no Hospital Santa Maria, em Salt Lake, e diz que não foi possível encontrar uma cura. Ellie pede para que ele jure estar falando a verdade. Ele jura.

Joel em The Last of Us Part II (2020)

Os eventos do primeiro jogo o levam a abandonar sua postura beligerante, em The Last of Us Part II (2020), e o convencem a viver em segurança com Ellie na comunidade de Jackson, habitada pelo seu irmão, Tommy Miller (Jeffrey Pierce), em busca de uma segunda chance na sociedade com sua nova filha.

É quando, 4 anos depois, seu passado vai ao seu encontro em busca de vingança, de maneira definitiva, pelas mãos de Abby Anderson (Laura Bailey), filha do médico responsável pelo o estudo do Cordyceps e ex-integrante dos Vagalumes.

Retomando o Estado de Natureza em Hobbes, o teórico inglês o identifica de duas formas já mencionadas: como cenário fictício da ausência de Estado e como cenário histórico, observado nas vidas primitivas das Américas. The Last of Us (2013, 2020) nos permite imaginar uma terceira, que se dá na interseção entre o cenário hipotético e a vida primitiva pós-apocalíptica. Se na parte I o jogo desenvolve pressupostos dessa hipótese, na parte II nos deparamos com a relação “interestatal” e a influência do conceito de Estado de Natureza no conflito entre os paramilitares WLF (Frente de Libertação de Washington), novo grupo de Abby, e a seita fundamentalista religiosa dos Serafitas.

Do poder secular e temporal no mundo pós-apocalíptico

Em Seattle, no antigo estado de Washington, nos Estados Unidos, dois grupos se enfrentam por disputas territoriais e por vingança. De um lado, vivendo no estádio Soundview, está a milícia WLF, os Lobos (wolfs), liderada a ferro e fogo pelo comandante Isaac Dixon (interpretado por Jeffrey Wright, de Westworld), líder responsável pela insurreição antifascista contra a FEDRA em Seattle.

Com o tempo, os Lobos provaram-se da mesma estirpe reacionária dos militares, tendo comandado diversas execuções públicas de desertores e subversivos. A ascensão de Isaac ao poder se deu após a morte dos líderes anteriores da milícia e, devido ao seu carisma, conseguiu manter a admiração de seus liderados, apesar da fama de implacável e da concentração de poderes virtualmente absolutos. Um soberano que deixaria Thomas Hobbes orgulhoso.

Vale notar que uma leitura mais atenta da obra revelaria os limites da teoria hobbesiana, especialmente em relação à legitimidade do poder do soberano. Assim, caso o Estado não mais garantir a sua segurança, ou seja, se ele não cumpre mais com a sua obrigação básica, os súditos têm o direito a cessar sua aliança se o soberano não estiver em condição ou não quiser protegê-los. Esse debate é conhecido por “Engagement Controversy”, bastante específico à situação da Inglaterra de Hobbes após ascensão de Oliver Cromwell e da experiência republicana, referente ao dilema de como os monarquistas deveriam se comportar na ausência do Rei, o que não nos parece ter paralelos com a narrativa do jogo, mas vale ser mencionado.

Os Serafitas, ou Cicatrizes — apelido pejorativo dados pelos Lobos, em razão das suas cicatrizes de iniciação na seita — , por sua vez, são uma comunidade religiosa e fundamentalista que vive numa ilha aos arredores de Seattle, após deserção em massa da zona de quarentena da FEDRA na região causada pela guerra civil entre o WLF e os militares. Os cultistas seguem os ensinamentos religiosos de sua Profetisa, que foi capturada e torturada há anos, sendo morta em combate contra os Lobos, envolvendo o seita num triângulo de destruição entre os militares e a milícia de Isaac.

Seus pensamentos compreendem a pandemia do fungo Cordyceps como uma retaliação divina contra o avançar da humanidade pelo uso indiscriminado da tecnologia, devendo ela retroceder para um modo de vida feudal e igualitário. É o economista Albert O. Hirschman (1915–2012), em A Retórica da Intransigência (1991), que descreve em sua tese da perversidade a conhecida estratégia argumentativa reacionária do tiro que sai pela culatra. Qualquer mudança da sociedade que não seja pela infinita parciomônia das tradições e experiência tendem a se voltar contra a sociedade. Tese que se encaixa perfeitamente no pensamento da Profetisa.

Os Serafitas são controlados por uma espécie de Conselho ou Senado composto pelos anciãos da comunidade. O sistema oligárquico, contudo, é absoluto e radicalmente fundamentalista, tendo condenado a morte Lev (Ian Alexander), um dos protagonistas da parte II, por se recusar a se casar com um dos anciãos, antes de raspar o cabelo como um dos homens, e fugir da ilha deixando para trás seu nome de nascimento, Lily.

Thomas Hobbes procura fundamentar o Estado como construção artificial através da metáfora bíblica do Leviatã, criado pela coletividade dos súditos, como uma resposta às fundamentações espirituais do poder do Estado que objetivam o controle do governo civil. Para Hobbes, a lei não emana do poder espiritual, mas do Estado soberano constituído pelo contrato social de maneira voluntária e racional. Não podem haver, portanto, dois poderes, o temporal e o espiritual, pois “o homem não deve obedecer a dois senhores”.

Os Serafitas em The Last of Us Part II (2020)

“Quando esses dois poderes se opõem um ao outro, o Estado só pode estar em grande perigo de guerra civil e de dissolução”, escreve Hobbes (p. 196), “pois, sendo a autoridade civil mais visível e erguendo-se na luz mais clara da razão natural, não pode fazer outra coisa senão atrair a ela em todas as épocas uma parte considerável do povo, e a espiritual, muito embora se levante na escuridão das distinções da Escola e das palavras difíceis (…), não pode deixar de congraçar um partido suficiente para a desordem e muitas vezes para a destruição de um estado”.

A solução para Hobbes é a subordinação de um ou outro poder, para se evitar a desagregação e a iminente guerra civil, representada por outra figura bíblica, o Behemoth.

Na terceira e quarta parte de seu Leviatã, Hobbes discute o Estado Cristão e o Reino das Trevas, utilizando-se de textos sagrados para deslegitimar a monarquia da Igreja nos domínios civis, refutando a sua pretensão tutelar. Hobbes argumenta que o poder espiritual se limita a Civitate Dei, o reino de Deus no além, e deve, portanto, subordinação ao poder temporal, mas esclarece que o poder exercido pelos líderes espirituais, por envolverem o medo desconhecido e do ininteligível, tende a ser mais efetivo para conter as paixões humanas, em razão da nossa miséria cognitiva. Os homens são, portanto, presas fáceis para o charlatanismo, o que exemplifica o estado de servidão dos Serafitas, enaltecendo e deturpando uma autodeclarada profetisa, anos após sua morte.

Seu principal temor é, contudo, a usurpação do poder temporal por representante da Igreja, ou seja, do poder visível pelo poder invisível, de maneira a provocar conflitos e guerras civis. Para Hobbes, não se trata de separar o poder da Igreja do Estado, numa relação secularizante e laica, mas de submetê-lo ao Estado, temporalmente constituído. O poder tem de ser uno.

De fato, as interpretações de Hobbes parecem corroborar para a compreensão do conflito interestatal entre Serafitas (onde o poder temporal é encimado pelo espiritual) e a milícia do WLF (poder secularizado, ou seja, laico), num confronto sobre o domínio de Seattle. A vantagem do conflito interestatal em comparação com o interestatal é a sua previsibilidade, o que sugere a sua evitabilidade. O monopólio da decisão de se fazer guerra e, portanto, em termos weberianos, da violência, é de uso exclusivo do soberano.

Outro ponto merece destaque: os dois Estados foram constituídos a partir de um contrato entre os governados. Seus soberanos, portanto, por serem absolutos e permanecerem no Estado de Natureza, não se submetem ao acordo de obediência. Assim sendo, tanto o Estado e, por consequência, o príncipe soberano, estão em Estado de Natureza com relação aos demais. A principal preocupação de Hobbes é a respeito da unidade pela obediência ao soberano, não entre Estados, que permanecem sujeitos à guerra, o que nos ajuda a compreender as disputas interestatais entre Serafitas e WLF numa dimensão hobbesiana.

Ellie em The Last of Us Part II (2020)

O abismo olha de volta

O mundo de The Last of Us (2013, 2020) é, evidentemente, muito mais catastrófico do que o nosso atual, mas se a pandemia do novo coronavírus nos ensinou algo, foi o quão ténue são os limites dos nossos contratos sociais quando nos aproximamos de um cenário arquetípico de Estado de Natureza.

Filas de pessoas estocando papel higiênico e comida ao primeiro sinal da gravidade da pandemia demonstram que, ainda em um cenário controlável, com medidas sanitárias, pesquisas com vacinas avançadas e lideranças internacionais consolidadas, estamos sempre a passos de distância de um cenário de todos contra todos.

Se o Estado de Natureza como descrito por Hobbes é um exercício legítimo de imaginação, com o propósito de legitimar a consolidação do Estado nacional, a ficção biológica-científica pós-apocalíptica apresentada pelos desenvolvedores da Naughty Dog em The Last of Us serve-nos, perfeitamente, como artifício premonitório de que os últimos de nós talvez não sejam tão diferentes de nós mesmos.

Referências

CASTELO BRANCO, Pedro Hermílio Villas Boas. Hobbes e a fundação da teoria política moderna. In: FERREIRA, LIER PIRES et al. Curso de Ciência Política, Grandes Autores. Elsevier Brasil, 2008.

HIRSCHMAN, Albert. Retóricas de la intransigencia. 1991.

HOBBES, Thomas (1983). Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil (Coleção dos Pensadores). São Paulo: Abril Cultural.

HOBBES, Thomas. Do cidadão. Clube de Autores, 2020.

RIBEIRO, R.J. Hobbes: medo e esperança. In: WEFFORT, F. (Org.). Os clássicos da política, São Paulo: Ática, 1991. Vol 1..

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Guilherme Pires de Mello
Vinte&Um

Professor, jornalista e cientista político. Doutorando, mestre e especialista pelo Iesp-Uerj