A veia autoritária contra as vias democráticas

Quando as forças políticas vão começar a se preocupar? Quando os tanques cercarem o Congresso Nacional?

Matheus Leone
Vinte&Um
4 min readSep 10, 2019

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Carlos Bolsonaro, o vereador federal, decidiu se manifestar ontem sobre a incapacidade das vias democráticas de mudarem o país. Falou daquele jeito carlesco, com ar de mistério muito mais oriundo do seu baixo apreço pela língua portuguesa que propriamente por objetivos metafóricos. O problema é que, das loucuras que Carluxo falou, algo foi especificamente preocupante. Trata-se do tuíte abaixo:

Temos que o vereador acredita que pelas vias democráticas não será possível mudar o país aos moldes do que os brasileiros querem, ou na velocidade que os brasileiros querem. A generalização, por óbvio, tem como base a crença de que o clã Bolsonaro fala “pelo povo”. Nada de anormal, dado que não existe populista que não julgue representar algum tipo de espírito nacional e coletivo, geralmente ameaçado por elites ocultas.

O problema é tratar-se de reincidência dos Bolsonaro no desprezo às ditas vias democráticas. Nos idos dos anos 90 o bolsopai afirmou que só teríamos mudanças reais no Brasil através de uma guerra civil e que o erro do regime militar foi torturar, mas não matar. Mais recentemente, em 2018, tivemos o possível-próximo-embaixador/mestre-de-chapa-quente Eduardo Bolsonaro dizendo que pare fechar o Supremo seriam necessários apenas um cabo e um soldado. Agora é Carlos, que com sua argumentação de entendimento tão fácil quanto Hegel, dizendo que a democracia é insuficiente para implantar as mudanças que sua família defende para o Brasil.

Não estamos diante de uma simples loucura de Carlos. Sabemos, e Bebianno já nos alertou, que Carlos nada fala sem a conivência do pai, que hoje se encontra internado após uma cirurgia. Bolsopai jamais desautorizou o filho e não será agora que o fará. Cabe até a ponderação se não foi mandante dessas palavras. Por mais esdrúxulo que seja Carlos, estamos lidando com um governo de viés claramente autoritário, que pela confusa lógica carlesca deixa claro o seu desapreço pela institucionalidade democrática.

Não me surpreendeu, para falar a verdade. Eu mesmo sempre fui um dos que alertaram para a tendência autoritária de Bolsonaro e daqueles que o cercam. O que propriamente me impressiona é o silêncio das lideranças políticas do país e do próprio Poder Judiciário. A normalidade com que tratam esse tipo de fala é tão surpreendente que assusta. Assusta por mostrar que não estão conseguindo ver o caminho autoritário que estamos trilhando. Ao que tudo indica, estão dispostos a perceber tarde demais.

O que estão esperando as forças políticas nacionais? Tanque na porta do Congresso Nacional? Não basta uma confissão expressa do filho do presidente de que a democracia não lhes parece suficiente? Não bastam as recorrentes tentativas de emparedar o Supremo Tribunal Federal? Não basta que incentivem manifestações que pedem o fechamento do Congresso?

Pelo visto não. Pelo visto já normalizaram esse tipo de discurso, que é cada vez mais internalizado pela população e por instituições de instâncias inferiores.

Não há via aceitável que não seja a democrática, não há caminho se não no Estado Democrático de Direito e não há Paulo Guedes ou Tarcísio que justifiquem fazer vista grossa para esse ataque à democracia. O filho do presidente, que já sabemos gozar de especial atenção do pai, fala que a via democrática não é suficiente para implantar o projeto político da família, mas já que o Paulo Guedes quer privatizar os Correios vamos fingir que isso não aconteceu? Vamos relevar?

Ditaduras não nascem do dia para a noite. São construídas primeiramente pela retórica, depois pelas ditas vias democráticas e quando essas não são suficientes (e Carluxo já nos disse que não são) vêm as medidas de cerceamento das liberdades. Pode começar com, sei lá, recolhimento de livros numa bienal com anuência do presidente de um Tribunal de Justiça. Pode ser, talvez, ataque à liberdade de imprensa com perseguição sistemática a jornalistas e veículos de comunicação específicos. Soa muito irreal?

Pois bem, não podemos esperar até que seja tarde demais. Não podemos imaginar que não acontecerá. Temos uma democracia com menos de quarenta anos. A impressionante solidez das nossas instituições não pode ser superestimada ao ponto de acharmos que estão consolidadas o suficiente para estarem alheias ao risco real de dilapidação.

As forças políticas nacionais devem deixar bastante claro que não abrimos mão das vias democráticas. É necessário traçar muito claramente uma linha no chão e dizer para essa gente, para esses tiranetes, que há um limite que não pode e não será aceito que ultrapassem. Comecemos a agir para resguardar nossas instituições e nossa democracia ou perceberemos tarde demais que fomos coniventes com o avanço autoritário. Já nos disse Padmé que a liberdade morre com um estrondoso aplauso.

Matheus Leone é cientista político, coordenador do LIVRES no Distrito Federal e editor-chefe da Vinte&Um.

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Matheus Leone
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