(Ainda) Sobre Meritocracia

Daniel Duque
Vinte&Um

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não é novidade, no Brasil, apontarmos para a baixíssima qualidade nos nossos serviços públicos. Seja saúde, educação, segurança, ou mesmo a própria emissão de algum documento, os brasileiros que não têm como pagar por um serviço privado acabam quase sempre reféns de alguma grande fila e espera para um atendimento muitas vezes insatisfatório, quando não mesmo negligente.

Muitos políticos e articulistas apontam para várias possíveis causas e soluções. A direita particularmente, tanto liberal quanto conservadora, costuma apontar para a falta de meritocracia entre os servidores, de modo que não se cria incentivos para que estes deem um melhor atendimento com maior produtividade.

Todo problema complexo, porém, tem uma solução simples, fácil e errada. A meritocracia parece ter uma irrefutável lógica para o sucesso: se você premia aqueles que trazem bons resultados, todos darão seu melhor em busca da premiação. Essa política, no entanto, dificilmente se aplica na prática, contribuindo muitas vezes pouco ou até dificultando para a melhoria dos serviços públicos. Na educação, talvez o exemplo seja o fracasso em melhorar as qualidade o aprendizado dos alunos com tentativas de distribuição meritocrática de recursos para escolas com base em notas de avaliações padronizadas.

A falha lógica da meritocracia trata, desse modo, da sua ignorância em relação a todos os fatores externos aos servidores que afetam diretamente as medidas de sucesso de suas áreas. Quando temos grande diferença de ambiente e público entre um servidor e outro, cobrar o mesmo resultado destes é o mesmo que exigir mais de um em relação a outro, podendo por vezes, quando uma das partes está em situação tão dramática, garantir o sucesso apenas daquele que atende em um ambiente muito mais favorável. Não há melhora possível a partir dessa situação, apenas a perpetuação do fracasso do serviço público para os piores ambientes e públicos mais vulneráveis.

Voltando ao exemplo da educação, que talvez seja o mais sintomático do erro de tal lógica, tem-se já hoje uma grande diversidade de estudos que apontam para fatores que atrapalham e ajudam na educação das crianças e adolescentes. A educação das mães ou responsáveis femininas, por exemplo, tende a impactar fortemente na maior cobrança de deveres e estudos em casa e possibilidade de práticas importantíssimas para o desenvolvimento cognitivo, como a leitura de livros antes de dormir. Ao mesmo tempo, um estudo de 2013 demonstrou que escolas situadas em áreas de grande perigo, com grande regularidade de confrontos armados entre facções criminosas e/ou policiais, apresentam grande piora tanto na frequência dos alunos quanto dos professores, impactando negativamente nas notas destes primeiros em português e, principalmente, em matemática (cuja presença do professor costuma ser mais necessária para o aprendizado).

A título de ilustração, no Complexo da Maré, Zona Oeste do Rio de Janeiro, 6,3% das mulheres de 20 a 64 anos não têm capacidade de escrever seu nome, segundo o Censo de 2010, e a taxa de homicídios dolosos ficou em torno de 2,3 por 100 mil habitantes em 2016 — o que significa cerca de 75 assassinatos com a intenção de matar naquele ano. Enquanto isso, no Leblon, Zona Sul da cidade, apenas 0,43% das mulheres de 20 a 64 anos se declararam analfabetas em 2010, e houve absolutamente nenhum registro de homicídio no ano de 2016. Como esperar, portanto, que as escolas situadas nos dois bairros possam de fato ser comparadas em termos de sucesso estudantil?

Isso não significa, é claro, que não há nada a se fazer, e não devemos avaliar nossos servidores de forma alguma. Deve-se, no entanto, abandonar a noção de meritocracia como premiação de servidores com bons resultados, para aplicá-la sim como premiação de servidores com boas práticas.

Esse entendimento de meritocracia por “esforço” não é recente, tampouco inovador. Diversos países já aplicam esse tipo de orientação nos serviços públicos, tendo obtido resultados consistentemente positivos ao longo do tempo. Ricardo Paes de Barros, economista responsável pelo desenho do Bolsa Família, e um dos maiores especialistas em educação no Brasil, apresentou em uma entrevista recente três pontos essenciais para a melhora desse serviço público no Brasil:

“Para isso [melhora da qualidade da educação], são necessárias três coisas. A primeira é aprender a documentar as boas práticas. É inadmissível que isso não seja feito. O que seria da ciência se não houvesse a devida documentação do que funcionou ou não e por quê? A segunda providência é ter um órgão central que evidencie as boas práticas. É um absurdo não termos na página do MEC, acessível a todos, as boas práticas educacionais do país reunidas. O terceiro ponto é dar incentivos e sanções para que o gestor aplique esses exemplos.”

Paes de Barros não afirma, em nenhum momento, haver necessidade de premiar professores e escolas com bons resultados, mas sim as melhores práticas que estes servidores podem ter. Ele, junto a outros diversos estudiosos de educação (e outros serviços públicos) entendem que a meritocracia deve ser de acordo com o interesse e esforço do servidor de melhorar seu serviço.

Portanto, é necessário que as direitas liberal e conservadora consigam compreender melhor as noções de meritocracia, e o desenho que ela deve ter para realmente apresentar alguma efetividade. Adotando um ideal de premiação de boas práticas, ao invés de bons resultados, poderemos registrar, enfim, uma melhora na qualidade geral de nossos serviços públicos, além de uma extremamente necessária redução das disparidades destes em relação às diferentes regiões do país.

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