As agremiações apartidárias/suprapartidárias: novo discurso para velhas práticas

Marcela Machado
Vinte&Um
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4 min readMar 12, 2018
Foto: Reprodução/Diário da Manhã

Na dinâmica do jogo político, assim como na lógica de mercado, o sucesso de uma empreitada — ou candidatura — é determinado pelas oportunidades. Seja o cenário que se torna favorável a um candidato, com o desfavorecimento de outro, ou a situação generalizada em que se insere dado fato político, exigindo a necessidade de reformas, redefinições, renovações diversas. No afã de preencher as lacunas abertas pelos recentes reveses políticos, em que a idoneidade dos atuais agentes públicos fora colocada à prova, observa-se o surgimento de agremiações que se auto conclamam apartidárias ou suprapartidárias, empunhando a bandeira da renovação na política.

Estas soluções alternativas, que nascem da própria sociedade, se aproveitam da fragilidade ou da morosidade, por parte dos legisladores, em aprovar reformas políticas eficazes, para, mesmo que não intencionalmente, colocarem sob questionamento o papel dos partidos políticos no Brasil. Impulsionados pelo fenômeno dos outsiders, tais agremiações apostam no aperfeiçoamento e preparo político de jovens líderes para a disputa e exercício de cargos eletivos, para que haja a pretendida virada democrática. A intenção é boa, mas levanta questionamentos.

Existe uma grande mística que envolve os partidos políticos, principalmente no tocante à abertura de oportunidades reais de disputa para a militância jovem e para as mulheres. Àqueles, é relegado o papel de mobilizar o partido, de ir às ruas, dar visibilidade ao partido para, assim, emplacarem, mais uma vez, alguém dos quadros históricos do partido em uma eleição. Às mulheres, o papel de preencherem os 30% da cota de gênero na lista de candidaturas, que, erroneamente, é classificado como cota feminina. Há, também, o discurso de que os partidos são cartorários, relegados a meros carimbadores de candidaturas.

Toda essa discussão, no entanto, faz algum sentido. A verdade é que, para quem não está inserido em um partido político, enxerga-o como uma caixa preta. A sociedade se vê completamente alheia das decisões que são travadas internamente. Os partidos decidem sobre quem disputará um determinado pleito e oferecem esta opção ao eleitor, dando a este uma falsa ilusão de escolha na disputa democrática, escolha esta que fora previamente estipulada dentro dos partidos, pelos dirigentes partidários.

Não é muito diferente, portanto, do modus operandi das novas agremiações que empunham a bandeira da renovação política: um processo seletivo é realizado para escolher quem se enquadra nos propósitos vislumbrados pela agremiação, para, a partir daí, os nomes escolhidos serem submetidos a treinamentos diversos, objetivando o preparo para a disputa de eleições. Estas agremiações, ao empunharem a bandeira da renovação e se posicionarem enquanto apartidários ou suprapartidários, estão, de certa forma, tomando partido em prol de uma causa. Ao se reunirem sob a égide de fundações ou organizações, com um propósito determinado e sob princípios específicos, estão se posicionando politicamente. É ingênuo acreditar que o partido político é a grande mácula do sistema eleitoral brasileiro. Mas, na tentativa de desempenharem funções que deveriam ser, primordialmente, dos partidos políticos, a saber, promover o preparo e a orientação política de seus filiados, tais agremiações acabam por se tornar um microcosmos daquilo que rechaçam: os partidos.

À parte de todo o exposto, ainda entra uma discussão muito mais delicada. Os apoiadores (para não utilizar o termo “patrocinadores” ou “financiadores”) destes novos movimentos, em sua maioria, são grandes empresários de diversos segmentos. Também pudera: a formação política promovida pelas agremiações tem custos altíssimos. Obviamente, não sairão de um fundo partidário. A minirreforma eleitoral de setembro de 2015 (Lei 13.165/2015) tirou o empresariado de cena, enquanto financiador de campanhas eleitorais. Ma non troppo: ele voltou, surfando na onda do descontentamento social com a política e no vácuo das tentativas de reforma, que se fazem iminentes desde a redemocratização, entrando e saindo da pauta política constantemente, por trás das fundações e organizações que pretendem aperfeiçoar o sistema democrático. Estaríamos diante do fenômeno do financiamento empresarial 2.0, travestido de benevolência e participação cidadã, assim como os investimentos em um determinado candidato eram mascarados pelas doações eleitorais?

Não há aperfeiçoamento democrático sem o aperfeiçoamento do sistema partidário. Apesar das boas intenções, tais iniciativas em pouco ou nada diferem dos partidos políticos tradicionais. Apropriam-se da brecha deixada pelos partidos para propor um novo modo de fazer política, dando uma roupagem nova para velhas práticas.

Antes de se pensar em debater questões mais generalistas, acerca de possíveis reformas no sistema eleitoral, é necessário tocar em um ponto nevrálgico, a saber: a reforma partidária. Os partidos políticos, por mais falhos que se apresentam, cumprem dois papéis cruciais na democracia: a organização de demandas sociais difusas e a racionalização do processo democrático. As agremiações que agora surgem não são capazes de fornecer alternativas ao modelo de democracia representativa organizada via partidos. Não há maneiras viáveis de se aperfeiçoar a democracia sem o devido fortalecimento dos partidos enquanto órgãos de representação democrática. Não é sobre dar mais autonomia aos partidos, mas de garantir maior transparência às ações que são executadas dentro dos órgãos partidários. Fazer com que o eleitorado entenda a dinâmica político partidária interna corporis é um grande passo para a superação da crise identitária que os partidos políticos enfrentam atualmente no Brasil.

Marcela Machado é cientista política, mestra e doutoranda em ciência política pela Universidade de Brasília (UnB).

*Agradeço o amigo Matheus Leone, cientista político e entusiasta dos partidos políticos, pela contribuição a este artigo.

*Publicado originalmente no jornal Diário da Manhã, edição de 12/03/2018.

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