Com amor, para Copacabana

Ficando perto do fato de já estar meio que perto de tudo

Marcelo Campos
Vinte&Um
Published in
7 min readDec 20, 2017

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Fica ali na Domingos Ferreira. Rua essa que só existe por algum erro de loteamento do começo do século passado. É ali que moram quinhentas pessoas em uma aberração modernista. Vinte e três conjugados por andar. Doze andares. O Edifício Master é a perfeita alegoria para Copacabana. Longe de ser um bairro bonito e agradável como nas novelas, suas quadras sufocam. Pessoas demais em um espaço muito pequeno. Uma ilustração estatística para melhor povoar a mente do leitor ao ler as histórias a seguir: se todos os habitantes de Copacabana decidissem ir à rua ao mesmo tempo, teríamos vinte pessoas por metro quadrado. Vinte preocupações distintas por metro quadrado. Vinte histórias diferentes por metro quadrado.

As histórias a seguir são diretamente inspiradas nos personagens do documentário brasileiro Edifício Master. A película, de 2002, vale como um retrato fiel da sociedade carioca do começo do milênio. As pessoas aqui são reais. Tinham desejos e angústias pessoais que nunca se realizariam. Algumas dessas pessoas nem vivas estão mais.

Eu moro em Copacabana. Esse texto não pretende ser um artigo antropológico de uma cultura distinta e longínqua. As próximas palavras não deixam de ser minha interpretação pessoal. Não deixam de ser, eu, ficando cada vez mais perto do fato de já estar meio que perto de tudo.

Dona Júlia, a ex-costureira

Ex-costureira da alta sociedade carioca, Dona Júlia reflete sobre a sua vida, sentada, no parapeito da janela de seu conjugado. Não restara muitas alegrias nos últimos anos. A idade havia se encarregado de derrubar cada ruga em seu rosto e pintar cada mancha em sua pele. Sem falar que depois que a Cloé do 409 morreu, Dona Júlia tornara-se a última integrante viva do Clube da Canastra, grupo que se reunira muito no final dos anos noventa para jogar cartas e se lamentar como cada pedra portuguesa transformava Copacabana em um quente e lotado purgatório. “Que vá à merda o português que achou uma boa ideia martelar essa porra na minha calçada” — esbravejava Júlia, mentalmente, enquanto lembrava do assalto.

Sim, assalto. Era uma terça-feira comum quando um rapaz, bem aparentado, apontou uma arma para a senhora enquanto, ferozmente, perguntava a localização de seu apartamento. Júlia, assustada e viúva há dez anos, se viu encurralada. Sozinha no mundo, abriu seu pequeno espaço para que um homem desconhecido pegasse seus mais caros pertences. Inclusive o colar de valor sentimental que seu falecido marido houvera comprado nos anos sessenta.

“A solidão machuca muito” — sussurra Julia ao vento e às buzinas do bairro. Porém, com medo de imitar Sônia, sua amiga da Miguel Lemos que pulara da sacada e caíra em cima de um pedestre desavisado, pensou em pôr seu corpo pra dentro. Mas não sem antes escutar um grito estridente no final do corredor. Era a Renata, moradora do 621.

Renata, a ex-moradora do morro

“Cristopher, você vai falar pra essa vadia que você é quase casado, tá me ouvindo? Eu não quero saber se é ela que tá dando em cima de você”. Renata bateria o telefone no gancho, mas Cristopher havia comprado o mais novo Z3 Rosa para a mulher de sua vida, ou como ele preferia chamá-la: “The Number 1 in Brazil”.

Se conheceram num baile funk no Morro da Babilônia. Após faltar uma semana de aula sem aviso, Renata havia fugido do castigo que seu pai lhe impôs. Christopher, por sua vez, havia subido o morro em mais um episódio da sua epopeia pelo conhecimento pessoal. Depois de quebrar na bolha do “.com” decidiu viajar o mundo e, diferente do autor desse texto, encarava cada situação com um olhar antropológico cirúrgico.

Se esbarraram no baile e na vida. Renata desceu do morro e Cristopher comprou um conjugado no Edifício Master para a Number One sentir-se mais confortável. Renata renegava o morro e contava os dias para Christopher levá-la para morar no Texas. Nem parecia que há alguns meses se orgulhava ao dizer que passaria fome, mas não viraria puta.

Renata fechou os olhos e tentou imaginar o casarão branco que lhe aguardava do outro lado do continente, mas seus pensamentos foram interrompidos por um canto erudito ecoando pelo vão do prédio. Era hora de conhecermos Nadir.

Nadir, a cantora erudita

Pela janela do banheiro do 403 ecoava uma linda melodia da ex-professora de canto, Nadir. Mal sobram espaços no seu conjugado. Os discos de vinil enchem o cômodo e carregam o clima do apartamento. A cortina, sempre entreaberta, termina por proteger essa senhora de setenta anos do mundo.

Depois do acidente de carro Nadir nunca mais fora a mesma. Voltava de táxi da Rádio Fluminense, onde, todas as manhãs, cantava canções tão antigas que tornava-se discutível a própria idade de Nadir. Mas estava no Táxi, no túnel Zuzu Angel, e, após uma curva em alta velocidade, viu sua vida passar diante de seus olhos. O carro capotou matando o motorista e ferindo gravemente a cantora da rádio. Após longa recuperação, havia tornando-se uma pessoa reclusa. Excetuando a entrevista que deu ao programa da Rádio Fluminense em 99, pouco mais se ouviu de Nadir. Suas últimas palavras na radiodifusão eram um misto de saudosismo e medo eloquente. “Gosto de cantar um pouco em casa. A música me distrai. Eu moro só e sou acostumada a conviver com meus discos, mas minhas filhas juram que vou me desfazer deles por esses CD’s de hoje em dia”.

Porém, no final do corredor, mora uma fã de Nadir. Daniela, do 422, pediria um autógrafo se soubesse que mora no mesmo andar da lendária Nadir da Rádio Fluminense.

Daniela, a professora de inglês

Pediria, provavelmente. Talvez até batalhasse contra sua sociofobia para conseguir trocar duas palavras com sua cantora favorita.

Daniela vivia em um inferno pessoal. Professora de inglês de mais de 200 alunos durante a semana e moradora do bairro mais adensado do Brasil, porém, ao mesmo tempo, sequer conseguia completar uma sentença olhando no rosto do interlocutor. Olhava para baixo assustada. Com medo de algo que ela mesma não conseguiria descrever.

Sentada na sua mesa de cabeceira, ao lado de uma estante ainda vazia, escrevia por válvula de escape. Seus poemas espalhados pelo conjugado eram a perfeita alegoria da bagunça que sua vida se tornara. Na sua mão havia um lápis e no papel algumas palavras rabiscadas:

“Opium dreams; Fields so green; Pain it’s all I’ve seen; Bright mind; Bright future; But stucked in my sins"

Daniela faz o longo percurso de três passos da mesa até a sua cama, percorrera metade de seu apartamento no caminho. Deitou-se e olhou para o teto. Já era tarde. Pela janela escutava o bairro pulsar. Mesmo em silêncio absoluto, o bairro não parava. Talvez o único pedaço do Rio de Janeiro que, de fato, não dormia.

A definição mais pura de silêncio ensurdecedor fora interrompido. O elevador havia sido acionado e era hora de conhecermos nossa última personagem, Alessandra.

Alessandra, mãe com orgulho

Eram duas da manhã quando Alessandra dava boa noite ao porteiro. Acabara de retornar cansada de sua primeira noite de trabalho. Tentou abrir a porta do apartamento da forma mais silenciosa para não acordar sua filha, Alexia Carolina, mas o esforço havia sido em vão. Sua filha de seis anos esperava a mãe acordada é sentada na cabeceira da cama.

Alessandra logo ralhou com a filha, mas, de forma doce/amarga, pôs-se a conversar com sua criança. Apenas 14 anos mais velha que a filha, Alexia era o maior orgulho da vida de Alessandra. Passaram o resto da madrugada brincando nos pequenos 23 metros quadrados do conjugado.

“Ó, assim que amanhecer eu vou te levar no McDonalds, tá bom?”. Alessandra não escondia sua empolgação com os 150 reais ganhos em apenas uma hora de trabalho. Não era fácil, mas colocava comida em casa e deixava sua filha feliz. O tão sonhado fast food foi o suficiente para Alexia permanecer a última hora da madrugada vigilante, aguardando amanhecer.

Desceram empolgadas pelo elevador e, ao chegarem no térreo, avistaram Seu Honório, o porteiro da madrugada, incrédulo. Um carro da polícia, um dos bombeiros e uma ambulância estavam estacionados em frente ao maior e mais imponente edifício de Copacabana.

Dona Júlia lutara durante o dia inteiro. Mas não tinha sido suficiente. Passou o dia entre o parapeito e sua cama até que, as três da manhã, decidiu se jogar do sexto andar. Esperou por não querer incomodar ninguém. Não queria simular a Soninha da Miguel Lemos. Não queria traumatizar nenhum vizinho que provavelmente não a conhecia. Só não esperava esbarrar com Alexia e Alessandra.

“Olha pra mim, tá filha. Continua olhando pra mim. Isso, boa, garota”. Mas Alexia precisava vislumbrar a vida, ou melhor, a morte. O senso de curiosidade obrigou a menina a abrir os olhos. Viu uma idosa estatelada no chão e algumas pessoas uniformizadas em volta. Tornou a fechar o olho e aproveitar o resto de sua manhã com a mãe.

Alexia, a menina de seis anos, vislumbrou Copacabana em sua totalidade: indiferente à dores alheias. Não, indiferente não, pior. Empática, mas apenas enquanto lhe é conveniente.

Se existia a amoralidade, Copacabana tratou de inventar a imoralidade. Se existiam jovens se matando por falta de perspectiva, Copacabana tratou de inventar idosos se matando por falta de perspectiva. Se existia o glamour do Copacabana Palace, a verdadeira Copabacana tratou de inventar o Edifício Master. Se existia vista para praia, Copacabana tratou de inventar a vista para vista. As janelas voltadas frente à frente, concluindo a piada sádica, onde todos podem ver todos, mas ninguém quer observar ninguém.

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Marcelo Campos
Vinte&Um

Relatos pessoais narrados por uma voz dentro da minha cabeça.