De que nos serve a liberdade?

Daniel Duque
Vinte&Um
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8 min readFeb 15, 2018
Freedom Art Print on Canvas, de Marmont Hill

Segundo o filósofo francês Jean Paul Sartre, o ser humano está eternamente condenado a ser livre. Em sua condição, portanto, há sua intrínseca responsabilidade, uma vez que, diante de uma questão, deve-se sempre optar por uma alternativa e por um critério pelo qual essa alternativa foi escolhida, sem haver parâmetros externos pré estabelecidos de valores ou moralidade. Dessa forma, a sua liberdade o une a sociedade, tornando-o responsável não apenas por sua própria vida, mas por todos que são direta e indiretamente afetados pelas suas próprias ações.

Evidentemente, Sartre não lida bem com a questão de ser livre, mas ter fome. Ainda que se compreenda que a ação “buscar o que comer” possa ser encarada como uma intencionalidade e, portanto, fruto da condição de liberdade, não é difícil entender a subnutrição como uma condição de não liberdade, na qual não há espaço para demais intenções ao ser humano senão a mera tentativa de sobrevivência.

Portanto, de que serve ser livre para um homem ou mulher que não possa acessar água limpa no seu dia a dia? Quais serão as intencionalidades de um idoso sem capacidade de sair da cama por incapacidade de tratamento de uma condição de saúde? Afinal de contas, são previsíveis as ações de quem está no limiar da sobrevivência: qualquer uma que permita manter-se marginalmente vivo. Havendo tal previsibilidade, não há real liberdade.

Na mesma direção, mas com sentido contrário, portanto, o economista indiano — e Nobel de Economia — Amartya Sen, desenvolve na década de 90 uma nova abordagem para o entendimento da pobreza, identificando-a com insuficiência de liberdade. A proposta do economista, desse modo, é uma avaliação da pobreza com base na ausência de liberdade para realizar coisas que se tem razão para valorizar.

Amartya Sen vê cada pessoa dotada de um certo conjunto de capacidades. É simplesmente uma questão de realizar essas capacidades que permitirão que as pessoas aumentem seus padrões de vida e escapem à pobreza. Desse modo, a pobreza humana não passa de um estado de privação de capacidade. Também aparece como “falta de capacidade (incapacidade) para ganhar renda suficiente”.

A diferença dessas duas concepções de liberdade entre Sartre pode ser (muito imperfeitamente) compreendida traduzindo-as pelo que o filósofo Isaiah Berlin na década de 50 classificou como liberdade negativa e liberdade positiva. A primeira, defendida fortemente pelos liberais, pode ser simplificadamente vista como “ausência de coerção”, isto é, a possibilidade virtual de agir segundo sua intencionalidade primeira sem limitações impostas por indivíduos e instituições com o controle de uma maior força. Já a segunda, em geral defendida por sociais democratas, pode ser entendida como “ser mestre de si mesmo”, ou seja, poder efetivamente realizar seus desejos, não apenas por ausência de algo que o impeça, mas capacidade real de atender o que está sob sua demanda.

Ao longo desses últimos 60 anos após o ensaio de Berlin, a liberdade negativa foi sucessivamente entendida como insuficiente para compreensão total do que é de fato ser livre, e cada vez mais colocada de lado frente à necessidade de fazer com que os seres humanos sejam efetivamente capazes de atender às suas necessidades classificadas como básicas. E assim, no entendimento deste que aqui escreve, foi-se lentamente criando uma sutil tensão entre os princípios da democracia liberal, que super valoriza a liberdade negativa, na figura dos direitos individuais, frente à promoção da liberdade positiva, na figura dos direitos sociais ou coletivos

Sociedades que valorizam os direitos individuais são aquelas em que minimiza-se ao máximo a coerção. Assim, o poder dos governos é limitado, seja sobre as opções de cunho moral ou sobre as de cunho econômico. Claramente, portanto, a propriedade privada é vista como um bem a ser garantido, pois através dela se realiza a “não coerção”. Trocas livres dessas propriedades entre seus detentores devem da mesma forma ser respeitadas por todos os demais entes dessa sociedade. Evidente que, consequentemente, nesse meio os impostos são vistos quando muito como um mal necessário para a garantia das liberdades negativas, que devem sempre que possível serem reduzidos.

Já sociedades que valorizam os direitos sociais são aquelas em que se minimiza ao máximo as as incapacidades dos indivíduos que as compõem. Desse modo, governos são vistos como legítimos para atender as demandas da população, mesmo que fazendo uso da coerção sobre uns ou outros. Não há propriedade privada ou troca livre que seja sempre garantida ou respeitada, a depender do que for avaliado como necessário para atingir determinada meta coletiva.

Após essa pequena introdução, esse artigo propõe a compreensão de que a garantia do máximo de liberdade negativa não é contrária, mas absolutamente essencial para que seja possível também ser positivamente livre. Da mesma forma, compreende-se que a ausência de liberdade positiva no presente advém da ausência de liberdade negativa anterior.

Para se chegar a essa compreensão, é preciso que seja entendida a intenção humana como condizente com o atendimento de seu desejo. Ou seja, as pessoas tomam ações coerentes com relação ao que querem — por exemplo, se estiver com fome, vai comer, se quiser perder peso (mais do que comer ou ficar sentado), vai diminuir a dieta e se exercitar, e assim por diante. É claro, as pessoas podem errar, podem não ter as informações necessárias para atingir seus objetivos, mas, ao longo da vida, suas ações são orientadas para atender seus desejos

Desse modo, a ação humana intencional é vista como um caminho para a realização de suas necessidades. Admitindo também a compreensão individual do próprio desejo como superior à todas as demais instâncias, a garantia da liberdade negativa torna-se essencial para que as pessoas, sabendo melhor do que ninguém o que querem ou precisam, ajam condizentemente para atender tais desejos ou necessidades.

Por que, então, nesse mundo há tantos seres humanos vivendo em privação de capacidade, sem que consigam de fato realizar aquilo que almejam? Por que há tantos que, mesmo que negativamente livres para tal, quando com fome, não são capazes de comer? Há diversos motivos possíveis de serem apontados, como falha de coordenação ou insuficiência cognitiva, mas todos, ao olhar deste que escreve, podem vir de um único motivo: ausência de liberdade negativa anterior.

Voltemos ao exemplo da fome. Há uma certa dificuldade de compreender como, em um mundo de opulência alimentar, haja tantos com insuficiência nutritiva. Como eles acabaram naquela situação? Por que sociedades primitivas enfrentavam fenômenos como a fome apenas como consequência de uma conjuntura ambiental (mais presente do que imaginamos), enquanto a nossa, de alta complexidade produtiva, precisa lidar com essa questão como um problema estrutural?

Observando a geografia da fome, não é difícil notar onde ela está concentrada: atualmente, a maioria esmagadora dos famintos se encontra em regiões onde houve grandes projetos de colonização e/ou passagem de ditadores ou juntas militares, com fortes governos e exércitos repressivos. A pobreza se apresenta no mundo hoje aonde a liberdade nunca teve vez.

Muitos exemplos podem advir desse entendimento de pobreza como consequência de ausência anterior de liberdades negativas. Um sertanejo nordestino, isolado em meio à caatinga seca, com pouca disponibilidade agrícola, ou mesmo capacidade de sair dali, não chegou naquela região infértil à toa. Ele foi levado ou por um processo posterior à escravidão, em que seus antepassados serviram aos canaviais, ou por um processo de migração forçada dos trabalhadores que atendiam às atividades provenientes da economia do açúcar na época colonial, após a crise do setor.

No Brasil, esse sertanejo só viu sua vida começar a melhorar no momento em que, pelo menos, começou a votar para os cargos executivos. A partir dali, o pouco dinheiro que ganhava deixou de perder valor no dia seguinte, seus filhos começaram a poder entrar na escola e o Governo começou até a destinar uma pequena renda permanente para sua família. Tudo isso foi fruto de um processo de expansão de liberdade negativa, uma vez que anteriormente sua sorte estava à mercê de poderes que não tinham nenhuma conta a prestar a ele.

Da mesma forma, a própria democracia só é capaz de ser garantida com um alto grau de liberdade econômica individual. Afinal, se há alguma instância além da sua que possa controlar seus recursos e limitar suas ações econômicas, tal como trocas e empreendimentos, não se torna difícil usar esse poder para controlar também suas ações políticas. É o perfeito exemplo do bem conhecido e documentado coronelismo, não só hoje no Nordeste brasileiro, mas também nas comunidades controladas pela milícia (que têm total controle sobre a vida econômica dessas regiões). No momento em que uma instância tem total capacidade de controlar a atividade econômica, não há como haver oposição. E sem oposição não existe democracia. Sem democracia, da mesma forma, não há liberdade negativa.

Portanto, se pode apenas haver garantia de liberdade negativa com ausência de liberdades positivas caso tenha havido uma violação anterior dessa primeira, o que é preciso ser feito? Em primeiro lugar, é preciso valorizar com total rigor as liberdades negativas dos indivíduos, e buscar uma sociedade que as maximize permanentemente. E, desse modo, é preciso reparar as mazelas causadas pela ausência anterior das mesmas, de modo que, em algum momento, a sociedade possa relacionalmente se assemelhar ao ponto de partida da humanidade, no qual até então todos estavam em seu nível máximo de liberdade negativa. A partir de então, não serão mais precisos reparações, e a garantia dos direitos individuais serão perfeitamente capazes de garantir por si só também os direitos sociais.

Não se pode deixar de notar neste texto, é claro, que se tem falado apenas em abstrações. Na realidade, é muito provável que seja impossível atingir o estado relacional do ponto de partida da humanidade (atualmente chamado de “igualdade de oportunidades”), ou pelo menos que não se conquiste novamente essa etapa até milênios à frente. Não se trata, portanto, de negar no curto, médio ou longo prazo o atendimento das necessidades básicas da população, combatendo sempre a pobreza, a fome, a falta de saneamento, dentre outros problemas sociais, mas entender que as políticas nesse sentido têm caráter reparatório, e não de direito, ao mesmo tempo em que devem minimizar seu confronto com as liberdades negativas. Deve-se buscar, portanto, sempre a eficiência e a focalização desses programas, a fim de minimizar a necessidade de impostos, e mantendo sempre o respeito pelas trocas livres e a propriedade privada.

De que nos serve, portanto, a liberdade? Por fim, esse que aqui escreve sente-se seguro em responder: ser livre é uma condição essencial para sermos capazes de atender as nossas necessidades e desejos. Se essa capacidade não existe hoje, é porque não se foi livre ontem. Se queremos ser capazes amanhã, devemos ser livres hoje.

Daniel Duque é economista e Mestrando pela UFRJ, pesquisador jr. do Instituto Mercado Popular e consultor de pesquisa jr. do Instituto Promundo.

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