Mary

Fernanda Fernandes Reis
Vinte&Um
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4 min readJun 19, 2019
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Encontrei um dia pelos corredores das almas uma amiga antiga, dessas de longa data que quase não falamos mais, mas continuam conectadas a nós de alguma forma. Dedos suados, ora mente cheia, ora mente vazia.

Há uma parte de nós em cada pessoa com quem dividimos um tempo considerável. Esse tempo pode ser curto e intenso, mudando nossas personalidades para sempre; longo e morno, onde anos não são suficientes para se construir uma conexão; ou algo entre um e outro. Mary e eu já fomos inseparáveis, unha e carne, melhores amigas. O nosso tempo juntas é longo e intenso, ela costuma dizer.

Mary gosta de aparecer de surpresa e me fazer jogar tarot. Ela acredita que as cartas mostram mais que o futuro, mostram aquilo que já sabemos mas não confiamos por estar em nossas mentes e não ter sido dito por alguém. Ela está parcialmente certa, isso acontece conosco, mas não acontece com todo mundo.

Ela sempre me puxa para aventuras que na verdade são situações furadas que nem eu ou ela deveríamos nos meter. Mary é assim: livre, loba e inconsequente. Eu brinco que esse vício dela pelo perigo na verdade é uma necessidade que ela tem de sair e ver se continua livre, testar sua liberdade até a ponta do precipício. ‘Mary, você não precisa ser tão assim’’, nós dizemos. Ela ri, mas continua. Acho que é por isso que não nos vemos mais todas as semanas, não trocamos mensagens o dia inteiro ou saímos juntas noites adentro.

Mary não diz em voz alta, mas sei que ela acha essa minha vida de casada aos 24 anos coisa de louca. Ela as vezes deita em meu colo e pergunta se um dia haverá amor para ela também, se suas viagens pelo mundo um dia a levarão ao seu último par da grande noite. Pode parecer que ela quer se juntar a mim, encontrar seu amor e se casar, mas eu sei que ama cada homem que já passou por seu caminho. Ela, no fundo, também sabe.

Há uma história que vivemos juntas e ela adora relembrar, conta repetidas vezes como se não estivéssemos no mesmo lugar naquela noite. Em uma grande clareira na floresta, nós dançávamos. A floresta, a fogueira, nossos vestidos esvoaçando enquanto dançávamos e cantávamos na noite, sentindo o vento balançando nossos cabelos longos, sentindo a liberdade. Eu digo a Mary que não deveria contar isso por aí, as pessoas podem estranhar.

Mas ela realmente não se importa. Na nossa relação, eu sou a insegura e ela a confiante. Toda vez que encaro meus desafios de peito aberto e cabeça erguida me sinto um pouco mais Mary e menos Fernanda. Ela sempre tenta me puxar para aventuras como as que vivíamos juntas, diz que é assim que se treina para ser confiante: confiando.

Esses dias eu estava cabisbaixa e ela resolveu aparecer para me dar uma animada. Eu sempre falo que as pessoas não entram e permanecem na nossa vida por acaso, que tem a ver com a nossa vibração. Aprendi com ela. Se queremos que alguém vá embora, devemos nos desligar mentalmente da pessoa primeiro. E se queremos que permaneçam por perto, podemos nos manter energicamente conectados com eles. É assim que ela sempre me acha e eu sempre acho ela.

Mary sabe muito e me ensina pelo exemplo, até com seus erros aprendo.

Ontem foi um dia especial e ela estava lá, quieta mas presente. Nós tínhamos um plano de ir embora juntas se tudo desse errado, mas agora ela diz que o tempo desse plano já passou. Eu tenho saudade dos nossos dias juntas e ela acredita que eles um dia voltarão, mas que o importante é me deixar ser quem tenho de ser hoje.

Um amigo nosso disse uma vez que a chuva de obstáculos e tentações significa que estamos mais no lugar onde devemos do que nunca antes. Mary apareceu de surpresa, como sempre, caminhando com ele pela Asa Norte enquanto eu caminhava também. Ela segurou minha mão e disse que a ponte em cima do precipício é estreita, mas que ela está comigo e nós passaremos por tudo isso juntas. ‘Só é difícil até deixar de ser’, ela diz.

Mary fala que já está de saída, mas que mentalmente estamos uma com a outra. Ela não quer que eu fique triste com a presença saudosa dela e, já sabe, ela tem razão.

Mas vou guardar o tarot para quando ela voltar.

Até já, Mary.

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