Não passa do natal
Uma análise sobre a guerra comercial entre China e Estados Unidos.
Em 28 de junho de 1914 estava o Arquiduque Franz Ferdinand, futuro kaiser do Império Austro-húngaro, em visita a Sarajevo, capital da Bósnia. Seu assassinato marcou a deflagração do sistema de alianças secretas que levou toda a Europa ao campo de batalha. À época, existia uma ansiedade atípica de que uma guerra continental era inevitável, por isso, a declaração chegou a ser até festejada na Alemanha. Do outro lado do canal, seria a primeira vez que a Grã-Bretanha estaria envolvida em uma guerra no continente em cinquenta anos.
“Não passa do natal” dizia a mídia londrina em agosto daquele ano, já que uma guerra de tamanha proporção, envolvendo todas as potências europeias e com a tecnologia da época, logo estaria encerrada. Uma guerra de curta duração criada por políticos, jornais e generais, levaria multidões a se alistarem rapidamente em vez de perderem a “oportunidade” de lutarem no próprio continente, contra a potência em ascensão que era o Império Alemão, em vez de se aventurarem com selvagens na África ou na Índia, a milhares de quilômetros de casa.
O resto dessa história você já sabe. Quatro anos, três meses e duas semanas até o fim definitivo da guerra, quarenta milhões de pessoas mortas ou feridas e um continente muito mais instável e vingativo que aquele de 1914. De lá para cá muita coisa mudou em relação à guerra. A Carta de São Francisco, de fundação das Nações Unidas, deslegitimou a guerra como instrumento viável e criou instituições para que os países pudessem resolver suas diferenças de forma diplomática e pacífica. Conquistas diplomáticas importantes que conseguiram evitar a catástrofe de uma guerra nuclear entre as duas hegemonias de meados do século passado.
Além do fator diplomático citado anteriormente, a interdependência econômica é algo que mudou completamente a lógica da guerra, especialmente no pós-Guerra Fria. A ascensão dos blocos econômicos, acordos de livre-comércio cada vez mais abrangentes e as inúmeras rodadas de negociação no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) são fatores cada vez mais proeminentes na política internacional e afastam cada vez mais a sombra de um conflito militar em larga escala.
Por isso, a guerra comercial entre os Estados Unidos e China é um capítulo importante na história da tragédia da política das grandes potências. Mais de um bilhão de habitantes e quase quarenta anos de crescimento ininterrupto a uma taxa de 10% ao ano fazem a China, de acordo com o Banco Mundial, “experimentar a mais rápida expansão sustentada de uma grande economia da história, tirando mais de 800 milhões de pessoas da pobreza”. A economia chinesa se modernizou, diversificou e subiu cada vez mais na cadeia de valor global ao longo destes anos. O crescimento econômico chinês foi e continua sendo sustentado por inúmeros subsídios estatais, fortes barreiras comerciais, grande interferência no mercado de capitais e outras práticas abusivas em disputa na OMC.
O histórico de disputas na organização tem sido historicamente a melhor forma de solução de disputas, inclusive em casos onde a China foi o lado perdedor. Em todos os casos, a China por consentir às mudanças necessárias com maior abertura do mercado, porém os processos no âmbito da OMC são demorados e o ambiente político-eleitoral americano exigia uma via mais enérgica. No final das contas, temos que lembrar que essa era uma das bandeiras em destaque da campanha de Trump em 2016.
Do mesmo jeito na China, Xi Jinping subiu o tom nacionalista nos últimos anos, abandonando o antigo slogan “Ascensão pacífica” de Hu Jintao para o socialismo com características chinesas, marco do pensamento do “Sonho chinês” de Xi. Nas ruas, mais e mais símbolos remontando à bravura da República Popular. A retórica belicosa dos meios oficiais de comunicação também é algo a se notar, tanto contra os Estados Unidos quanto com aliados que não são alinhados com a política de Trump, como a Nova Zelândia ou o próprio Brasil.
Logo no início da guerra comercial, o que todos os analistas diziam era que seria uma negociação razoavelmente simples: os chineses assinariam um cheque bem grande comprando mais produtos agrícolas dos Estados Unidos e o Trump iria levar essa vitória para casa, agradando seu eleitor tanto no discurso quanto no bolso. Confesso que nessa época acreditava que algo semelhante poderia acontecer, uma vez que a renegociação do NAFTA/USMCA foi basicamente um grande jogo de retórica e pouquíssimos ganhos. Inclusive, esse foi o motivo pelo qual protelei bastante escrever sobre a guerra comercial, que toda semana parecia que terminaria. Apesar do ruído de que um acordo está em vias de se concretizar em breve, o que pode realmente ser verdade, a impressão que todos os canais oficiais passam, tanto do lado americano quanto do chinês, é de que o que está em jogo é uma capitulação completa da outra parte.
A recente escalada em relação à Huawei, e todo o setor de tecnologia, é um ponto de virada nas negociações. As retaliações sendo propostas nos veículos de imprensa da China falam em restringir o acesso de empresas americanas a metais de terras raras (hoje quase monopolizadas por firmas chinesas) ou até mesmo dumping de títulos do tesouro americano. Não acredito que chegará a tanto, já que estamos falando de opções quase nucleares em termos econômicos, porém a ventilação destas ideias traz à tona o aspecto da dificuldade intrínseca de se fechar um acordo comercial já que chegamos no aspecto “orgulho nacional” das negociações, que tanto Xi quanto Trump levam muito a sério. Tal qual a Alemanha de 1914, cristaliza-se a ideia do lado chinês de que o que está em jogo é o próprio status ascendente da China como uma potência, mais do que uma simples guerra sobre um superávit comercial. Com o partido cada vez mais centrado na figura de Xi Jinping, um país mais nacionalista que nunca nestes 30 anos pós-Tiananmen, fazer dos Estados Unidos o inimigo a ser superado é um bom negócio. O problema é que desse jeito iremos muito além do natal de 2019.
Lucas Mendes é analista internacional pela PUC Minas, liberal, botafoguense e focado no Leste Asiático.