O Brasil dos Neo-Torquemadas

Hoje recolhem livros. Amanhã estarão recolhendo pessoas. A inquisição nunca para nos livros.

Matheus Leone
Vinte&Um
4 min readSep 8, 2019

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Jair Bolsonaro, Marcelo Crivella e Wilson Witzel

Eu não tenho conseguido escrever sobre política desde a posse de Jair Bolsonaro. Numa espécie de choque, com pitadas de preguiça, sinto uma paralisia que tem me impedido de escrever. O meu foco recente tem sido a ficção, pois só ela tem feito algum sentido para mim. A realidade política do país se torna cada dia mais distópica, agora com direito até a ordem de recolhimento de livro.

Esse episódio envolvendo o Bispo (que nas horas vagas é prefeito) Crivella e a Bienal do Rio serviu para mim como um tapa na cara. Um wake up call. Agora eu percebo que estamos em outro país, em outra realidade. O autoritarismo conservador, que achávamos se tratar apenas de uma retórica política para ganhar eleição, foi internalizado pela população e começa a penetrar nossas instituições. Não a toa um desembargador se deu a liberdade de autorizar o recolhimento de livros.

A decisão do desembargador Claudio de Mello Tavares (felizmente já revista por Dias Toffoli), Presidente do TJRJ, de permitir o recolhimento de livros na Bienal é flagrante atentado contra a Constituição. É ato grotesco de censura e nos remete aos tempos mais sombrios do nosso país e da humanidade. E como bem sabemos, não há período autoritário que não mande recolher livros. Em geral para depois queimá-los.

Estamos diante de uma regressão democrática. Estamos diante de um período autoritário. Se nossas instituições ainda não tombaram não é por falta de pressão popular para que tombem, mas pelo vigor que o Congresso Nacional ainda demonstra para resistir.

Ver uma bienal sendo invadida por agentes do Estado, que lá estavam para censurar, é a triste manifestação do espírito dos nossos tempos.

Foto: Wilton Junior/Estadão

O objeto da censura? Um beijo gay. Uma HQ dos Vingadores (que não é voltada para crianças) com um beijo entre dois jovens homens. O Bispo da Universal não gostou. Considerou o beijo algo impróprio para crianças. Citou o ECA para legitimar sua ação e mandou seus agentes para a Bienal.

Haveria problema se fosse um beijo hétero? Lógico que não. O imoral para o Bispo não é o beijo, e sim o beijo gay.

O fato é que o Brasil é outro. Essa gente que chegou aos postos de mando da nação tem projetos nefastos de controle das liberdades, pois as odeiam. São o que o ministro Celso de Mello (que tanta falta fará ao STF) descreveu como "mentes retrógradas e cultoras do obscurantismo e apologistas de uma sociedade distópica…” que “erigem-se, por ilegítima autoproclamação, à inaceitável condição de sumos sacerdotes da ética e dos padrões morais e culturais que pretendem impor, com o apoio de seus acólitos, aos cidadãos da República".

Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal

E Celso resume o que vem pela frente: “Sob o signo do retrocesso — cuja inspiração resulta das trevas que dominam o poder do Estado-, um novo e sombrio tempo se anuncia: o tempo da intolerância, da repressão ao pensamento, da interdição ostensiva ao pluralismo de ideias e do repúdio ao princípio democrático!!"

As palavras do decano do STF ficarão marcadas como uma denúncia histórica do que vinha pela frente.

Desde o começo da era Bolsonaro estamos tentando entender o que seria este novo tempo, na expectativa de ver que tudo não passava de retórica de campanha. Não era só retórica de campanha, é um projeto político autoritário para fazer nossas instituições e liberdades se ajoelharem diante de uma maioria reacionária ad hoc.

E qual é o papel dos liberais diante de tudo isso? É chegada a hora de entender o que estamos vivendo no país. Não basta Paulo Guedes com um discurso pró economia de mercado quando livros estão sendo censurados. O compromisso primeiro dos liberais não é com a economia. Não foi por isso que nasceu o liberalismo. O liberalismo nasce como resposta direta ao autoritarismo. Nasce para defender direitos e garantias individuais (dentro deles também a liberdade econômica).

Nosso compromisso primeiro tem que ser com esses direitos e garantias. Liberdade de expressão e manifestação. Estado de Direito. Democracia. Não são termos a serem jogados ao vento. Não são adendos do liberalismo, SÃO O PRÓPRIO LIBERALISMO!

Já passou da hora de se opor, de entender que não estamos diante de tempos normais, que o antipetismo não pode ser maior que o compromisso com a democracia e as liberdades. Não não somos obrigados a engolir Crivellas e Bolsonaros por medo da esquerda. Não somos obrigados a leiloar nossas liberdades para extremistas de direita ou de esquerda. Não somos obrigados a vivermos reféns de quem vive para atacar as liberdades sexuais.

Não podemos aceitar. Condescender agora custará caro. Primeiro censuram livros alegando que são impróprios por teor sexual (um beijo gay) ao mesmo tempo que afirmam que farão direcionamento de verbas da Cultura para projetos conservadores, barrando os de temática LGBTQI. Logo mais estarão recolhendo pessoas por pensarem o que os Neo-Torquemadas não querem que pensem. A inquisição nunca para nos livros.

Matheus Leone é cientista político, coordenador do LIVRES no Distrito Federal e editor-chefe da Vinte&Um.

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Matheus Leone
Vinte&Um

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