O guia literário para o liberalismo fundamental

O mínimo que uma pessoa tem que ler para orgulhosamente se dizer um liberal.

Matheus Leone
Vinte&Um
10 min readJul 20, 2017

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Bill of Rights / Reprodução

De uns anos para cá o liberalismo tomou um certo espaço no debate político brasileiro através de uma contestação da ordem ideológica que governava o país (uma espécie de social democracia do PT). Há 10 anos, se dizer liberal no Brasil era até um ato de coragem, mas o declínio econômico e moral do petismo fez surgir duas ondas, de origens distintas, mas oriundas da mesma causa. O ressurgimento de uma “direita” no país veio bifurcada entre os que se dizem liberais e os que se denominam conservadores.

Há, no entanto, uma fraqueza intelectual em ambas as correntes. Já tive a oportunidade, por exemplo, de criticar a tal direita conservadora e bolsominion brasileira, alertando que ela tem muito pouco de realmente conservadora (se levarmos em conta a tradição filosófica do conservadorismo). É um conservadorismo sem orientação doutrinária, sendo muito mais um compilado de afirmações reacionárias sem nenhum respaldo teórico.

O mesmo ocorre com setores do dito “movimento liberal” brasileiro. Há, é verdade, liberais brasileiros que estão inseridos no debate político há muitos anos e se esforçaram nesse sentido para dar um norte àqueles que defendem a ideia de um Estado limitado, do respeito ao Estado de Direito, da proteção das liberdades individuais e do regime de mercado como modelo de geração de riqueza geral.

No entanto, nós que já estamos inseridos nesse debate há mais tempo temos um certo dever de garantir que o liberalismo não seja desvirtuado por aqueles que, não conhecendo a própria doutrina, dizem ser liberais. O liberalismo enquanto corrente filosófica é avesso aos achismos e à mediocridade (e aqui rendo minhas homenagens a Ortega Y Gasset).

Assim, liberais têm que conhecer a doutrina, ler e entender do que se trata. E a tentativa desse texto é fornecer aos interessados pelo tema uma lista de livros fundamentais para a devida compreensão do liberalismo.

Pois bem, aqui vai meu guia literário de liberalismo fundamental, com links para os livros. Vários deles podem ser encontrados online, pois são domínio público. Notem ainda que fora dessa lista há um sem-número de livros e obras relevantes. Essa lista reflete a minha visão pessoal sobre o que é fundamental.

O resumo do resumo — Uma leitura que faz o apanhado geral da teoria liberal. O guia de bolso de qualquer liberal que se preze.

  • O Liberalismo: Antigo e Moderno — José Guilherme Merquior (1991): Merquior foi o grande estudioso do liberalismo no país e sua contribuição veio não apenas nos debates públicos dos quais participava, com artigos em jornais e revistas, mas o que eu considero o melhor resumo da teoria liberal já produzido. Esse livro vai dar ao leitor um compilado enxuto, porém intelectualmente brilhante, dos principais autores e corrente do liberalismo na história. Sem dúvida é um must-have de qualquer liberal.

O começo de tudo — Vamos voltar ao início, ao surgimento do pensamento liberal.

  • Dois tratados sobre o governo civil — John Locke (1681): Os dois tratados de John Locke são a primeira grande obra liberal que conhecemos. No primeiro tratado Locke responde Sir Robert Filmer, defensor da teoria patriarcal da legitimidade política. Locke aponta o que considera falhas nos argumentos de Filmer. No segundo tratado Locke vai desenvolver sua teoria contratualista da legitimidade política e da devida organização estatal. Aqui surgem os principais conceitos do liberalismo como a propriedade, a legitimidade, a representação e os limites do Estado, antes representado absoluto na figura do soberano.
  • A Riqueza das Nações — Adam Smith (1776): Enquanto Locke é o início da discussão da legitimidade política, Smith é o precursor da teoria econômica do liberalismo. Não apenas na sua análise sobre o modelo de produção industrial que surgia, com linhas de produção, mas também um conceito chave para o liberalismo que é o do equilíbrio de mercado (a mão invisível).
  • A Mão Invisível — Adam Smith (1776): A Riqueza das Nações é um livro imenso, mas há uma publicação que seleciona nele apenas os capítulos relativos à Mão Invisível. Esse sim um livro bem curto e bem acessível, que não vai substituir a leitura de toda a obra, mas que pode ajudar na compreensão do autor. Trata-se de uma boa alternativa.

O liberalismo clássico — Locke dá início ao liberalismo como corrente política que se desdobra nos pensamentos de outros importantes autores.

  • O Federalista — James Madison, Alexander Hamilton e John Jay (1788): A revolução americana foi a segunda revolução liberal no mundo (a primeira tendo sido a Revolução Gloriosa da Inglaterra). Após a revolução, os americanos tinham a missão de ratificar uma Constituição, que deveria ser aprovada em todas as 13 colônias. Enquanto opositores da constituição defendiam um sistema de confederação em que não houvesse um poder central forte, os federalistas defendiam a ratificação da constituição com seu modelo federalista. Os artigos trazidos nessa obra tratam da operacionalização da primeira república liberal do mundo, com tópicos diversos como formas de se evitar a ditadura da maioria, sistemas de checks and balances entre poderes, necessidade de um exército nacional etc. Uma obra fundamental que muitas vezes é relegada pelos liberais.
  • A Democracia na América — Alexis de Tocqueville (1835): O Visconde de Tocqueville, um erudito francês, decidiu viajar para os Estados Unidos da América para fazer sua análise daquela sociedade que se apresentava de forma tão distinta da Europa. Afinal, os Estados Unidos eram, na época, a única democracia liberal no mundo. Tocqueville ficou impressionado com a ânsia dos cidadãos americanos de tomar parte nas discussões públicas sobre o governo e suas medidas, mas também apontou defeitos inerentes da democracia como a possível ditadura da maioria. A Democracia na América é uma das minhas obras favoritas pela forma brilhante com que Tocqueville consegue enxergar a democracia liberal, com suas vantagens e seus defeitos.
  • Sobre a Liberdade + A Sujeição das Mulheres — John Stuart Mill (1859 e 1869): O que é a liberdade e qual a sua importância para o desenvolvimento humano? Quais os limites da liberdade? Devem os indivíduos estar submetidos ao julgo das maiorias? Todas essas questões estão presentes nesse ensaio que para mim é uma das obras mais importantes do liberalismo, pois ela nos dá um conceito mais claro sobre a liberdade, principalmente ao trazer o “princípio do dano”, em que Mill afirma que a a liberdade de um caminha até encontrar a liberdade de outro. Em A Sujeição das Mulheres Mill inicia um importante debate sobre a igualdade entre os gêneros, coisa inovadora no século XIX. A obra ataca as leis de casamento, a ideia de que mulheres são inferiores aos homens e defende a igualdade. Há quem diga que o texto em questão foi assinado por Mill, mas escrito por sua esposa Harriet Taylor.
  • Princípios de Economia Política — John Stuart Mill (1848): No mesmo ano de lançamento do Manifesto do Partido Comunista, John Stuart Mill lançou essa importante obra de economia política que sintetizava as discussões econômicas feitas até sua época. Há uma síntese da economia clássica, desde Adam Smith, com discussões sobre o mercantilismo e David Ricardo. Esse aqui vai ser bem difícil achar em português, infelizmente. Eu mesmo não encontrei, mas aqueles com uma certa facilidade com o inglês não terão dificuldade de encontrar inúmeras versões.

As mudanças na sociedade — leituras importantes para entender como chegamos até aqui.

  • A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo — Max Weber (1905): Weber não pode ser chamado propriamente de liberal, pois não era um ideólogo (ou seja, não produzia ideologia). No entanto, sua obra é crucial para a compreensão da sociedade moderna, em especial do capitalismo. Nela, Weber analisa o sistema econômica sob a ótica das raízes religiosas da sociedade. Enquanto, por exemplo, o catolicismo prega o ócio contemplativo o protestantismo tem visão distinta. O capitalismo moderno encontra grande parte das suas bases sociológicas na doutrina protestante. Esse livro, apesar de uma leitura chata (Weber costuma ser) é sensacional!
  • A Rebelião das Massas — José Ortega Y Gasset (1929): Ortega Y Gasset é o que podemos chamar de um liberal conservador, mas conservador na origem filosófica da coisa, em muito atrelado ao ceticismo. Esse livro é importante para entendermos a transição da sociedade para uma sociedade de massas. Gasset tem uma visão muito crítica dessa ascensão das massas às esferas de tomada de poder, alertando para uma tendência à mediocridade da sociedade moderna. Esse com certeza é um dos meus livros favoritos, mas já alerto que ele pode produzir uma angústia muito grande no leitor, tendo em vista a precisão da análise e o quão atual ela é.
  • Origens do Totalitarismo — Hannah Arendt (1951): Para qualquer liberal a liberdade humana é o valor fundamental sob o qual as pessoas podem manifestar sua essência através do livre pensar. O totalitarismo, seja ele o fascismo ou o socialismo, massacra a liberdade humana não apenas do ponto de vista das proibições, mas principalmente no efeito psicológico que tem sobre as pessoas. A dominação é total, é mental. Dessa forma, a contribuição da filósofa Hannah Arendt sobre o totalitarismo é leitura obrigatória para nos lembrarmos dos inimigos da liberdade e dos riscos de baixarmos nossa guarda para discursos autoritários que visam solucionar todos os problemas do país.
  • Capitalismo, Socialismo e Democracia — Joseph Schumpeter (1942): Sobre essa sensacional obra de Schumpeter duas coisas saltam aos olhos e são dignas de conhecimento. A primeira é a sua visão de que o capitalismo é fadado a desaparecer não pelo seu fracasso, mas justamente pelo seu sucesso. A segunda é sua teoria concorrencial da democracia, ou seja, a teoria de que a democracia é uma concorrência entre as elites (políticas), cabendo ao eleitor (tal qual um consumidor) tomar sua decisão sobre qual elite ocupará o poder através de eleições. As análises de Schumpeter sobre o socialismo também são dignas de nota, fazendo dessa obra uma leitura muito importante. Infelizmente não achei, até hoje, uma versão traduzida o livro, mas há diversas traduções para o espanhol e várias versões em inglês.
  • O caminho da Servidão — Friedrich Hayek (1944): Hayek é uma importante contribuição para o liberalismo ao atacar o planejamento central como um modelo não apenas imoral, mas ineficiente de organização da economia e da sociedade.
  • Poliarquia: Participação e Oposição — Robert Dahl (1971): O cientista político Robert Dahl, com sua obra, é tido como o principal formulador do que chamamos de democracia liberal pluralista, ou seja, as democracias modernas. Dahl estabelece critérios claros para julgamento do quão democrático é um país. A obra de Dahl auxilia na compreensão do funcionamento das democracias contemporâneas de forma simples e empírica.
  • O Liberalismo Político — John Rawls (1993): Quando todos achavam que não havia mais o que discutir na filosofia política John Rawls apareceu com sua obra Uma Teoria da Justiça (1971), que revolucionou a filosofia política contemporânea. A tese do autor é que todos os indivíduos são dotados de um conjunto mínimo de liberdades que nem sequer o bem estar de toda a coletividade pode negociar. O foco de Rawls é a criação de um conjunto mínimo de regras que todos os indivíduos racionais possam concordar. A visão neocontratualista de Rawls vem do exercício racional por ele proposto em que indivíduos sob o véu da ignorância (sem saber se são homens, mulheres, ricos, pobres, negros, brancos etc) formulariam um conjunto mínimo de regras que garantiriam maior igualdade e justiça. O caráter “utópico” de Uma Teoria da Justiça é posteriormente “corrigido” na obra O Liberalismo Político em que Rawls discute a criação de um consenso sobreposto, ou seja, de que forma seria possível fazer com que pessoas de diferentes religiões, origens, faixas de renda etc concordassem com valores mínimos para a harmonia da sociedade. Rawls é um dos mais complexos filósofos e suas obras reviveram a filosofia política e o liberalismo ético com uma forte preocupação social.

Liberalismo brasileiro — não é possível se dizer um liberal no Brasil lendo apenas livro de estrangeiro.

  • O Abolicionismo — Joaquim Nabuco (1883): Em um país que foi marcado pela chaga da escravidão por tantos anos, tendo a vergonha histórica de ter sido o último a abolir a prática, a obra de Nabuco em defesa da abolição é um motivo de orgulho para os liberais brasileiros. A obra em questão apresenta uma condenação moral da escravidão através de princípios liberais marcantes como o direito natural e a dignidade humana. Não é possível ser um liberal no Brasil ignorando essa marca histórica e aqueles que lutaram para acabar com ela.
  • Raízes do Brasil — Sérgio Buarque de Holanda (1936): O sociólogo Sérgio Buarque não era um liberal, mas foi um dos principais analistas da formação cultural do Brasil. A obra em questão é, na minha visão, a melhor para a compreensão de aspectos sintomáticos da cultura brasileira como a falta de enraizamento das teorias liberais, bem como a corrupção sistêmica e o patrimonialismo imperante. Desde a análise sobre o ethos da colonização portuguesa, passando por comparações com a colonização espanhola e chegando no conceito de “homem cordial”, Sérgio Buarque de Holanda é, sem dúvida, um dos mais importantes autores brasileiros do seu século.
  • O Homem Cordial — Sérgio Buarque de Holanda (1936): Para os preguiçosos de plantão ou para aqueles que não dispõem de muito tempo é possível comprar apenas o capítulo que trata do “homem cordial”, sendo esse o conceito central da obra, mas que — já alertando — é explicado por questões trazidas por Holanda em toda a obra. Enfim, é uma boa alternativa.
  • O Argumento Liberal — José Guilherme Merquior (1983): O livro em questão é um compilado de uma série de artigos de José Guilherme Merquior em jornais e revistas. Debates profundos sobre filosofia, história, cultura e economia. Merquior é, na minha visão, nosso maior liberal e não recebe dos liberais brasileiros os devidos créditos.

O liberalismo, ao contrário de correntes como o marxismo, é extremamente variado, havendo intensas discordâncias entre autores. O marxismo tem uma premissa básica que é a obra de Karl Marx e sobre ela toda a corrente ideológica se sustenta. Não é o caso do liberalismo, que conta com correntes mais “à esquerda” e mais “à direita”. Temos muitas correntes dentro do liberalismo, mas acredito ter formulado uma lista mínima de livros que qualquer liberal tem que ler durante a vida. Obviamente a lista é grande e alguns desses livros são extensos, mas não é possível viver a vida se dizendo liberal sem ao menos ter familiaridade com o que essas obras dizem.

Matheus Leone é cientista político e editor da Vinte&Um

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