Por que a Beleza importa (Parte I)

Jonab Silveira Fernandes
Vinte&Um
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16 min readJul 13, 2018
Primavera de Sandro Botticelli

“Em qualquer época entre 1750 e 1930, se você pedisse às pessoas cultas para descrever o objetivo da poesia, da arte ou da música, elas teriam respondido: a Beleza. E se você perguntasse pela razão disso, você aprenderia que a Beleza é um valor, tão importante quanto a Verdade e o Bem.

Depois, no século XX, a beleza deixou de ser importante. A arte, cada vez mais, concentrou-se em perturbar e em quebrar tabus morais. Não era a beleza, mas a originalidade, conseguida por qualquer meio e a qualquer custo moral, que ganhava os prêmios.

Eu acho que nós estamos perdendo a beleza e há um risco de que, com isso, nós percamos o sentido da vida”

São com essas palavras que o filósofo britânico Roger Scruton abre, de forma melancólica, seu esplendoroso documentário para a BBC, como parte da série Modern Beauty. Baseado em uma de suas obras-primas, Beauty (Oxford University Press, 2010), Roger Scruton fez um diagnóstico cirúrgico da transformação que a arte sofreu no começo do século passado e que, com o passar dos anos, se enraizou de forma mais contundente na cultura ocidental.
Em um artigo de três partes, sendo essa a primeira, os autores têm a intenção de não apenas introduzir o pensamento estético de Scruton, como também contribuir nesse debate menosprezado, porém rico e necessário.

Em meados da década de 1980, o Museu do Palácio de Charlottemburg, em Berlim, decidiu desfazer-se do quadro O Embarque para Citera, de Antoine Watteau (1684–1721). A pintura representa um grupo de casais, usando trajes de peregrinos inspirados em figurinos teatrais; em um cenário idílico, eles rumam ao barco que os levará a Citera, a Ilha do Amor, onde, segundo a mitologia grega, Afrodite aportou logo após nascer da espuma do mar. A decisão do museu, claro, gerou comentários revoltosos, porém alguns amigáveis, entre os intelectuais das mais vastas regiões do planeta. Um deles merece atenção especial, o sociólogo britânico Norbert Elias. Com seus mais de oitenta anos e possuindo apenas trinta por cento da visão, Elias ainda tinha plenas condições de ser consolado pela beleza daquele quadro, dado que cada traço criado por Watteau estava no palácio da memória de Elias. Puxando apenas pela memória, diante de toda a comissão do museu, em frente ao quadro que não podia mais ver, Elias proferiu uma conferência antológica, que convenceu a direção a manter o quadro onde estava. A conferência originou o ensaio A Peregrinação de Watteau para a Ilha do Amor.

Essa é a incrível e inexplicável experiência estética que Scruton relata, a consolação na tristeza e a afirmação na alegria, a certeza de que a vida ainda valeria a pena. A beleza, portanto, tem um papel sagrado, mesmo que exercido por ateus ou agnósticos. Todavia, para Scruton, os modernos cansaram desse dever sagrado, eles resolveram não retratar a realidade, mas se vingar dela. Uma vez que o mundo é perturbador, a arte deve ser perturbadora também. Aqueles que procuram por beleza na arte estão somente desligados da realidade moderna. Julga-se, então, que a vida não pode ser redimida pela arte.

Deve ser percebido, no entanto, que o problema para o qual Scruton nos convida a refletir não reside no debate entre subjetividade e objetividade do juízo estético. No caso, apelar para a subjetividade presente na avaliação dos valores estéticos não resolve o problema levantado pelo filósofo, pois aqui não se trata simplesmente de uma mudança de critério para o julgamento sobre a beleza de uma obra de arte. A mudança foi de intenção.

Em primeiro lugar, houve, por um lado, a drástica diminuição de importância dada à beleza em relação a outros valores, de outra espécie que não a estética, como a novidade, a utilidade, a incomodidade, a agressividade. Aconteceu, portanto, uma transmutação na hierarquia dos valores. Em segundo lugar, dependendo de qual daqueles novos objetivos estivesse em foco, houve uma alteração, em nível escalar, do próprio valor estético almejado, passando-se do belo para o feio: se o objetivo principal é perturbar ou ofender, a feiura estará sem dúvida mais apta a alcançar tal objetivo.

Assim, a crítica de Scruton a esse tipo de arte não é equivalente, por exemplo, às críticas dos acadêmicos em relação à pintura impressionista ou dos renascentistas em relação à arte medieval. Tais divergências de gosto na história da arte sim podem justificar-se por certa subjetividade própria dos julgamentos de valor. É possível dizer que acadêmicos, impressionistas, renascentistas e medievais privilegiavam aspectos diferentes da beleza. Mas nenhum deles poderia ser acusado de desprezá-la em sua totalidade ou de buscar deliberadamente produzir algo feio.

De fato, ao analisarmos a Estética ao longo dos séculos, é patente o cuidado por destacar a beleza frente a outros valores. Para Platão, na sua concepção exposta em diálogos como Hippias Maior e A República, existe um perigo real na arte. Platão acreditava que o que entendemos por “realidade”, nada mais é que “sombras”, restos, indícios vestigiais de um plano metafísico superior, uma “realidade” que é mais real que aquilo que nossos sentidos podem perceber, então a arte não somente seria inútil, mas seria indesejável, pois a arte seria uma representação de sombras, do que é imperfeito por definição. Isto é: se a arte é representação, é imitação (do grego, mimeses), este seria o objetivo da arte. A beleza não pode ser representada na arte, ela está nas formas e é puramente inteligível. O que entendemos por beleza, na realidade, são sombras, imitações imperfeitas da forma da beleza. Mas, se a beleza é mais uma das formas, como qualquer outra, ela também é especial no sentido que ela tem uma conexão com a forma do “bom”. Aqui começa a ideia dos transcendentais “bom, belo e verdadeiro”, ou, mais resumidamente, quando dizemos “belo e moral”, estamos resgatando justamente esta ideia.

Já em Aristóteles, a arte é uma das chamadas “ciências produtivas”, que diferem das ciências práticas, estas dizem respeito à ética e à política, e as ciências teóricas, que dizem respeito à verdade enquanto tal. As artes produtivas estão preocupadas com a “produção” da criatividade humana, isto é, desde algo concreto como uma cadeira qualquer que foi construída por um artesão, até produções abstratas com a Retórica e a Poética. A primeira diz respeito à persuasão, a segunda, a qual nos deteremos, diz respeito à arte da dramaturgia.

Na Poética, Aristóteles busca descrever as regras da boa peça dramática. Segundo o filósofo, um bom drama deve ser uma mimese de ações por atores de forma que possamos, através delas, purgar nossas emoções pelo “medo” e pela “piedade”, o que ele chama de catarse, uma palavra que dá a ideia de “esvaziamento”, “purgação” ou “purificação”. Quando você “purga” as impurezas do seu corpo do banheiro, você está realizando catarse. Quando você chora no final de A Sociedade dos Poetas Mortos, você está realizando catarse, e assim por diante. Mas a poética tem outra dimensão dentro da obra aristotélica, que é uma resposta à ideia, de Platão, que a Arte seria indesejável. Se a teleologia (a finalidade) da arte dramatúrgica é catarse, então pelo menos uma das artes tem finalidade, portanto, podemos dizer que, pelo menos em uma instância, a arte é desejável ao cidadão da Pólis (da cidade).

Por fim, Aristóteles entende a beleza, assim como Platão, enquanto forma. Ele, porém, tem um entendimento diferente das formas. Se, em Platão, elas são apenas inteligíveis e acessamos apenas as representações das formas; em Aristóteles é um tanto mais complicado, mas, para os propósitos desta exposição, basta compreender a diferença entre “potência” e “ato”. A primeira diz respeito àquilo que existe tão somente enquanto possibilidade de ser; no exemplo mais comum: quando o escultor está diante de um bloco de mármore, pronto para esculpir. O bloco de mármore tem a forma da escultura em potencial (podemos até dizer que o bloco de mármore é, em potência, qualquer escultura possível). Porém, somente ao esculpir o bloco na forma desejada, a escultura realiza-se em ato. A beleza, porém, não funciona dessa maneira.

O escultor não está esculpindo a própria beleza, a beleza surge, segundo Aristóteles, quando o escultor obedece a certas características que vão dar origem à beleza da escultura. Por exemplo, a simetria da escultura. Portanto, a beleza está na forma da “simetria” (entre outras). Um exemplo pode deixar mais claro: quando você olha para uma pintura qualquer, digamos, de uma maçã, se você olhar bem de perto, poderá ver as pinceladas individuais que dão forma à maçã, mas perde de vista a própria maçã. Ela é construída a partir de tais pinceladas, mas não encontra-se em nenhuma delas. Somente quando vista de longe, perde-se de vista as pinceladas, mas podemos ver a maçã; de forma análoga, a beleza é a maçã da pintura, as formas que compõe a maçã são as formas que compõe a beleza. Isto significa que tudo que é belo não é o belo em si, mas é coparticipe da ideia de belo, o belo encontra-se em tudo aquilo que é belo, sem ser, exatamente, o próprio belo. São tão-somente instâncias de belo.

Para São Tomás de Aquino, a beleza é aquilo que dá prazer ao sujeito que observa, mas este “observar” não é a mera experiência subjetiva, e, sim, o contemplar racional do homem do objeto belo, do seu juízo. Isso significa que, para que o belo seja “visto”, é necessário que o sujeito o descubra. É um processo ativo: ao olhar para algo belo, ele precisa conhecer aquilo que tem a propriedade de ser belo, isto é, o objeto.

Mas o que é “conhecer”? Para São Tomás de Aquino, conhecer algo é ter em mente a forma da coisa a ser conhecida, e a forma da coisa é puramente inteligível. É na forma da coisa que o belo se encontra. Em resumo, para que possamos ver a beleza da flor precisamos, primeiro, da própria flor. A noção de apreciação estética ou juízo estético vai ser extremamente importante em filósofos posteriores como Kant, e o próprio nome do seu livro acerca da estética, Crítica do Juízo ou Crítica da Capacidade de Julgar, traz, consigo, a herança da filosofia tomística.

O Nascimento de Vênus (Sandro Botticelli)

O entendimento renascentista sobre Beleza pode ser apreendido através de uma profunda admiração da obra O Nascimento de Vênus (circa 1483) de Sandro Botticelli (1445–1510). O olhar da Deusa da Beleza nos convida para transcendermos as paixões humanas, a luxúria, e vivermos no amor puro à beleza. A forma humana é um convite à união espiritual, não carnal.

Com a revolução científica e a chegada da modernidade, temos uma grave mudança na forma como o universo é entendido. O universo passa a ser visto como um mero sistema mecânico, funcionando através de leis físicas. Não havia mais espaço para deuses, espíritos, valores ou ideias. Mas, ao centro desse universo newtoniano, existia um vazio, um vazio com o formato da face de Deus. E foi Anthony Ashley-Cooper, 3° Earl de Shaftesbury, quem propôs como preencher esse vazio.

O lorde de Shaftesbury defende o que chama de “beleza moral”, ou a síntese entre ética e estética, onde o “bom” e o “belo” são o mesmo (ou parte de um terceiro conceito, que abarca eles dentro de si), a beleza/bondade física está em um nível inferior, pois a beleza é inteligível. Resgatemos o exemplo da pintura da maçã. É o design da obra que importa, não sua materialidade, o que ele vai chamar de “formas vivas” ou “formas formantes”. A beleza se dá, para Shaftesbury, em três ordens ou graus de beleza: A primeira é a beleza da forma enquanto design. A segunda é a capacidade de criar o design do objeto belo, que é mental, isto é, a capacidade intelectiva de projeção do objeto em algo belo, é o que o escultor tem em mente ao realizar a escultura. O terceiro grau de beleza é o divino, da qual toda a beleza origina e emana.

Por fim, outra ideia introduzida por Shaftesbury é o desinteresse do juízo estético. Essa ideia pode ser explicada através de uma anedota muito famosa no mundo da Música. Conta-se que certa vez Beethoven apresentava para o público sua Pathétique. Ao terminar a apresentação, um rapaz indagou ao compositor prussiano o que aquela peça significava. Beethoven, então, pediu atenção e avisou que só explicaria mais uma vez. Então, tocou novamente a sonata. A lição dessa anedota é clara; no momento da apreciação do belo, somente o belo importa. Ele não pode ser explicado ou possuído, mas sentido, experimentado e vivido. As ideias do lorde inglês, discípulo de John Locke, se refletem em diversos escritores e críticos britânicos, como Edgar Allan Poe e Oscar Wilde. O segundo se referia à arte como um elemento inútil. Ele quis dizer que a arte tem um valor maior do que qualquer mera utilidade.

Outro grande nome da filosofia estética do século 18 é Edmund Burke. Seu principal trabalho acerca de questões estéticas é Investigações Filosóficas Acerca da Origem Das Nossas Ideias do Sublime e do Belo, onde ele trabalha a ideia não apenas do belo, mas também do sublime. O sublime é, para Burke, uma experiência mutuamente exclusiva com o belo.

O sublime é algo que gera uma espécie de “terror distante”. Imagine agora, leitor, que você está diante de uma tempestade no horizonte, você pode ver as nuvens, pesadas de água suspensas chegando até você. Uma força da natureza: inexorável, poderosa, inevitável. Esta é a sensação do sublime, a sensação de pequenez, da nossa insignificância diante do universo. Apesar disso, o sublime pode, assim como a beleza, gerar uma sensação de prazer no indivíduo, contanto que continue distante. Imagine a tempestade da qual falei anteriormente, agora imagine que ela está sempre se aproximando, mas nunca, de fato, chega até você. A sensação é de terror, mas também de fascinação.

Immanuel Kant é considerado o mais importante filósofo da modernidade, e na sua Crítica do Juízo (ou Crítica da Faculdade de Julgar), ele faz uma divisão entre quatro grandes categorias de juízo estético. Eles são: o agradável, o bom, o belo e o sublime. À exceção da categoria do agradável, os três conceitos já foram apresentados neste texto.

Aquilo que é “agradável” é algo que está mais próximo daquilo que podemos chamar de “gosto pessoal”. Pense em uma música que você gosta, mas você não pode chamar exatamente de bela. No meu caso, gosto de ouvir jazz fusion. Não é um estilo de música realmente “belo”, mas me agrada aos ouvidos, obviamente eu já ouvi músicas belas no estilo, mas não é este o ponto, o ponto é que existe uma diferença entre aquilo que nos agrada e aquilo que é verdadeiramente belo.

Em segundo lugar, pense num vídeo de um cão ou criança sendo salva de uma enchente, ou algo similar. Basta procurar “wholesome” no YouTube e você poderá achar exemplos da segunda categoria estética de Kant, o prazer advindo de observar um ato nobre ou moral. É o sentimento de ver algo edificante, ou aquela sensação boa de dar esmola para o mendigo (contanto que você não pense muito sobre o que ele vai fazer com o dinheiro).

A terceira categoria é o próprio juízo do belo enquanto belo. Algo é belo quando você observa o objeto com um “interesse desinteressado”, já falamos disso anteriormente, mas só recapitulando, o desinteresse está presente no ideal platônico de amor, por exemplo, o famoso amor platônico descreve, justamente o que Kant deseja descrever. Quando amamos alguém de verdade, diz Platão, amamos não seus corpos ou sua aparência, amamos a pessoa mesma, então não maculamos este amor com a imundice do sexo, do carnal.

De forma análoga, quando vemos algo belo, não podemos querer possuí-lo. A simples observação distante deve bastar ao sujeito, por isso que é um interesse desinteressado, interesse pois o objeto prende a atenção, desinteressado pois não queremos possuir o objeto belo. O belo também deve ser, ao observador, universal sem necessariamente sê-lo. Para o sujeito, se ele acha algo bonito, todos devem achar este mesmo algo bonito.

Finalmente, temos a ideia do sublime, esta é uma ideia que ele traz diretamente de Burke, mas só para rememorar, veja o final do filme Melancolia, de Lars von Trier. Não é lá um filme muito bom, nem agradável, ora, não é nem sequer um belo filme, mas é sublime no sentido de que, conforme o planeta melancolia vai aproximando-se da Terra, nós vamos sendo tomados de terror, um terror impotente, grandioso e inexorável, o planeta vai colidir com a Terra e não há nada que possa ser feito, é isso que Burke e Kant querem dizer com o Sublime.

Finalmente, chegamos ao século 20. Realizar uma síntese acerca dos desenvolvimentos da estética deste período exigiria outro texto do tamanho deste, mas eu gostaria de falar, bem resumidamente de dois grandes nomes do período, Georg Lukáks e Arthur Danto, ambos pertencem a escolas diferentes, sendo que o próprio Lukács tem duas fases do seu pensamento estético. A primeira, advogando um neokantismo, a segunda, advogando o realismo marxista. Já Danto recupera o pensamento hegeliano da estética e vai falar na ”morte da arte”. Para ele, só haveria, hoje, a arte enquanto instituição, o que ele vai chamar de “mundo da arte.”

Dos gregos antigos aos filósofos e artistas mais modernos, o culto à beleza preencheu um lugar muito especial na vida humana. Todavia, o propósito da arte deixou de ser a busca pela consolação e pelo entendimento do sentido das coisas, quando a beleza era um fim em si, não apenas um meio, e passou a assumir, confusamente, um caráter utilitário de adestramento voltado à promoção pessoal, à propaganda, à feiura e à ciência.

Por consequência, o lar que construímos através da consolação da beleza aprendidos no exercício disciplinado das virtudes, sustentados pelo espírito do cavalheirismo, munidos pela imaginação moral e pela educação liberal, são descartados pelos netos ocos da “Idade da Razão” e filhos apáticos da “Era da Informação”, entorpecidos pelo ópio do hedonismo relativista, em troca de uma arte utilitário, subjugado pela informação, que vem se tornar instrumento de dominação dos manipuladores e o entretenimento dos manipulados.

A ruptura entre a arte voltada para a Beleza e a arte utilitária se deu com o urinol de Duchamp. Naquele momento, o francês anunciaria para o mundo, tudo pode ser arte. Se tudo pode ser arte, não existe mais lugar para a habilidade, o gosto e a criatividade. A arte perde o status, portanto, de mostrar o real sob a luz do ideal. O abandono da Beleza, que valoriza a racionalidade junto às necessidades do homem, por Duchamp valoriza o espírito animal, o distanciando das virtudes e da racionalidade. Quando caímos no vazio da espiritualidade e a utilidade ascende como principal guia moral, o sofrimento, o consumismo, o autoritarismo ganham força, dado que agora o homem se torna um deserto espiritual, necessitando preencher esse vazio de qualquer forma. Podemos dizer então que a arte moderna é, nesse sentido, imoral.

Mas, quando falamos da arte moderna, não nos referimos a toda e qualquer obra feita desde a década de 30. É óbvio que expressões como “a arte de hoje” trazem implícita a existência de exceções à regra, o que é inclusive salientado pela menção, por Scruton, de duas dessas exceções: um escultor, Alexander Stoddart, e um arquiteto, Leon Krier. A “arte de hoje” a que o filósofo se refere é um tipo específico, que pode ser induzido a partir dos exemplos apresentados no documentário, e que recebe essa referência genérica por ser aquele de maior relevo e prestígio no establishment artístico, de tal modo que “Aqueles que tentam restaurar a antiga conexão entre o belo e o sagrado são vistos como antiquados e absurdos”.

O ponto crucial entre esse choque artístico não se dá na linha temporal, mas, sim, no tratamento que é dado à feiura da vida, ao lado ruim do nosso cotidiano. Enquanto a verdadeira arte imprime Beleza na feiura, a arte kitsch transmite a feiura.

A diferença é exemplificada pela comparação entre uma pintura de Delacroix, que representa uma cama desarrumada, e uma instalação de Tracy Emin, que é uma cama desarrumada. Conforme interpreta Scruton, a pintura de Delacroix traz “beleza a algo que não a tem”, conferindo “uma espécie de bênção, em seu próprio caos emocional.”

Delacroix — An Unmade Bed, 1828

“A cama é transformada pelo ato criativo, para se tornar outra coisa: um símbolo vívido da condição humana, um símbolo que estabelece um vínculo entre nós e o artista.” Embora alguns vejam esse significado também na instalação de Tracy Emin (intitulada “My Bed”), Roger Scruton faz uma distinção: “mas há toda a diferença do mundo entre uma verdadeira obra de arte, que transforma a feiura em algo belo, e uma falsa obra de arte, que participa da feiura que exibe”. A cama de Emin “é só mais uma realidade sórdida entre outras; literalmente, uma cama desarrumada.”

My Bad — Tracy Emin

A consolação dos horrores e a afirmação das alegrias do cotidiano sempre foram as principais características da arte. As tragédias gregas, ao confrontar a pequenitude do homem frente ao poder dos deuses, as tragédias shakespearianas, cujos personagens traziam consigo o lado mais feio da humanidade, ou mesmo animações japonesas trágicas, como o Túmulo dos Vagalumes, que traz consolação através da feiura do descaso da humanidade pelo próximo e do horror da guerra. Por outro lado, os gregos, os renascentistas, os barrocos, os românticos nunca hesitaram em celebrar o sexo, mas não como uma união vazia entre dois corpos, mas como uma celebração de união espiritual.

A arte moderna, no entanto, nos nega essa tradição. Ela profana a morte e o sexo, mostrando-os como banais. Ao profaná-los, ela profana o amor de um indivíduo tem pelo corpo morto da pessoa amada ou o amor que um indivíduo tem pelo sexo com a pessoa amada. A arte moderna, enfim, profana o amor, que é a base da Beleza. Essa cultura da feiúra nos diz que o homem não merece o amor e daí se originam diversas e diversas obras que mostram a humanidade como uma espécie odiosa. O caso mais famoso dos últimos tempos é o seriado americano Black Mirror.

A arte nada mais é que o conhecimento e experiência adquiridos ao longo do tempo para satisfazer o homem, através do conforto da consolação e das proporções que agradam a vista. Não respeitar todo esse conhecimento adquirido no passado é não respeitar o presente e as necessidades humanas. E é exatamente que a arte kitsch, ou a arte falsa, faz.

Por fim, através da busca pela beleza, nós modelamos o mundo como um lar e, fazendo isso, nós igualmente ampliamos nossas alegrias e encontramos consolação para nossas tristezas. A arte e a música lançam uma luz de significado na vida ordinária e, através delas, nós somos capazes de enfrentar as coisas que nos preocupam e encontrar consolação e paz em suas presenças. Essa capacidade da beleza, de redimir nosso sofrimento, é um motivo pelo qual a beleza pode ser vista como substituta para a religião.

Por que dar prioridade à religião? Por que não dizer que a religião é uma substituta da beleza? Melhor ainda, por que descrever as duas como rivais? O sagrado e o belo, permanecendo lado a lado: duas portas que abrem para um único lugar; e, nesse lugar, nós encontramos o nosso lar.

Jonab Silveira Fernandes é presidente do Grupo de Estudos Dragão do Mar, graduando em economia e um entusiasta por artes. Esse texto foi escrito em cooperação com Pedro de Sá Torres, bacharelando em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba.

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Jonab Silveira Fernandes
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Apaixonado por esportes, por board games, por política internacional, por economia e por algumas outras coisas.