Pragmatismo e a crise da Covid-19: como grandes empresas lidam com o dilema “saúde pública ou manutenção econômica”?

Rafaella Salles
Vinte&Um
Published in
8 min readJul 23, 2020
CBN Recife

Ao deparar-me com esse dilema enfrentado por muitas empresas em mais um desses infinitos dias lendo jornal, percebi que há muito mais da teoria sociológica do que imaginamos dentro deste imaginário de crise que estamos enfrentando.

Aqui, busco analisar o impacto e a percepção que o conceito de pragmatismo como doutrina política possui na vida cotidiana da sociedade e das grandes corporações em tempos de caos social. Por meio do suporte das ideias de John Dewey correlacionarei este objeto empírico com os conceitos estudados em Sociologia com a finalidade de entender melhor como em tempos de crises sanitárias, a interpretação social dos fatos podem auxiliar ainda mais em uma possível solução.

Antes de mais nada, é importante um pouco de enquadramento ao momento em que estamos vivendo, para que o contexto desse dilema fique mais claro. Em dezembro de 2019 o mundo foi surpreendido com a contaminação de um novo coronavírus, cuja doença foi nomeada de COVID-19, que começou a infectar Wuhan, na China. Desde então, o novo vírus tomou uma proporção global muito rápida. Mais de 100 países foram contaminados já no início de fevereiro deste ano.

Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde decretou estado de Pandemia Mundial dado o rápido contágio e proliferação do novo coronavírus ao redor de todo mundo. Por meio dessa caracterização, entramos em quarentena, um período de isolamento social e reclusão para conter o descontrole da doença em uma escala maior, evitando assim que mais pessoas possam se contaminar nas ruas ou em trânsito entre países.

Com as medidas impostas como resposta ao coronavírus, a vida da população de forma geral foi deslocada: agora funcionamos dentro de casas e vivemos isolados sem contato social.

Muitos estados reagiram de forma a colaborar com as recomendações da OMS sem questionar. O Brasil começou muito bem: todos reclusos e somente serviços essenciais em funcionamento, mas três semanas depois através de um dos pronunciamentos oficiais do presidente Jair Messias Bolsonaro, boa parte da população e de seus seguidores começaram a questionar a necessidade desta política de reclusão. Enfim, o presidente declarou que deveríamos voltar “à normalidade”.

Ao mesmo tempo, muitas pessoas questionaram o que o Governo Federal faria para amenizar a vida e gerar maior conforto econômico para os trabalhadores. Algumas medidas foram propostas e executadas, como a manutenção do Bolsa Família para mais de 1,5 milhão de pessoas beneficiárias e a criação do auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 para autônomos e de R$ 1.200,00 para mães solos provedoras de seus lares.

Ainda assim, boa parte da população queria mais: cobrar das grandes corporações isenções de serviços essenciais e até mesmo doações. Com esse último questionamento me coloquei a pensar em qual seria o papel e como as empresas estão reagindo em momentos assim, partindo do princípio de que todas elas — ou uma grande parte — está enfrentando esse dilema “moral” da economia x elo social.

DEWEY, PRAGMATISMO E A ESCOLA DE SOCIOLOGIA NORTE-AMERICANA

John Dewey foi um filósofo liberal norte-americano e também um dos maiores representantes da corrente pragmatista no mundo. Suas ideias versavam sobre democracia, educação e pragmatismo como elementos essenciais para não apenas estabelecer um sistema, mas representar uma forma de vida social. Isso é, quanto mais há o exercício coletivo de inteligência, melhor. Para ele, todo conhecimento surge através das indeterminações do meio e da vontade de resolver problemas em seu entorno.

Uma pessoa pragmática é caracterizada por ter praticidade em seus objetivos traçados, popularmente conhecido por “fugir do improviso.” Além disso, junto com essa lógica, há o conceito de que as ideias e atos só são verdadeiros se servirem para a solução imediata dos problemas individuais e coletivos, dado que Dewey pressupõe essa intrínseca relação. Como dito anteriormente, ele acredita que somente assim o conhecimento é possível de ser alcançado. Finalidade e ação prática.

É muito comum vermos nos dias de hoje boa parte da população rejeitar ações políticas pragmáticas e uma grande associação dessas atitudes à políticos mais voltados ao eixo da direita. Por ter essa imagem associada diretamente à direita que muitas pessoas desconfiam de ações caracterizadas como mais pragmáticas, esquecendo-se por vezes que esse estilo de vida em sociedade não necessariamente é um elemento ideológico.

É verdade que muitos políticos da direita são pragmáticos, mas é um erro rejeitar essas ideias assumindo que são ideias ruins ou conhecendo muito pouco do que ela busca alcançar.

Como isso tudo se relaciona com o assumido dilema em questão?

Há uma associação direta por grande parte da sociedade que a postura adotada por algumas empresas não têm a finalidade de ajudar a sociedade, somente em ganhar pontos para arrecadar mais vendas pós quarentena. Pode até ser verdade e, não necessariamente algo por princípio incoerente ou maldoso. Mas o ponto é que empatia e pragmatismo não são coisas mutuamente excludentes. Elas podem e devem coexistir. Explico melhor abaixo.

Numa dessas reportagens que estava lendo, estampado no jornal EL País “Empatia ou pragmatismo, o dilema de empresas entre o respeito a vidas e a retomada da economia”, logo no início é possível se deparar com o seguinte trecho destacado abaixo:

“Com o avanço de ações mais duras para frear a disseminação do coronavírus no Brasil, alguns empresários começam a se manifestar de maneira incisiva contra as medidas de quarentena e de isolamento social adotadas por algumas cidades e Estados do país. O grupo critica o fechamento do comércio e a paralisia da atividade, defendendo que o dano à economia brasileira será muito maior do que o causado na saúde pública, e parte dele, inclusive, chegou a minimizar as perdas humanas provocadas pela doença”.

Quando percebemos o teor desta constatação é possível sentir certo asco nas intenções destas empresas, afinal, estamos vivendo em um momento de caos muito grande em que deveria ser maior o desejo por manter a vida das pessoas, em detrimento de aquecer a economia. Muitas pessoas acreditam que dá para fazer as duas coisas ao mesmo tempo, mas é extremamente prejudicial dividir atenção e equipes técnicas para pensar os dois, enquanto podem somar esforços para a melhor resolução de um de cada vez.

Junior Durski e Alexandre Guerra, empresários das redes Madero e Giraffas, respectivamente, gravaram vídeos em teor acusatório — mas pautados pelo pronunciamento de Bolsonaro sobre o fim da quarentena — dizendo que seus funcionários e demais pessoas da sociedade deveriam ter medo de perder seus empregos ao ficar em casa nesse “descanso forçado”. Essas duas atitudes foram repudiadas por grande parte da população e, de certa forma, como descrito na reportagem, entendidas como pragmáticas demais e cruéis.

Este não é um texto de defesa, mas também não visa promover boicote ou cancelamento, somente uma reflexão sobre o uso indevido do termo pragmatismo.

Quando visto de fora, ações como estas, de fato, tem um teor muito forte que nos demonstra que o pragmatismo deles é a única forma de reprodução desse estilo de vida. Mas, Dewey como acima demonstrado, nos ensina completamente o contrário. Praticidade, objetivismo e eficácia não tem relação alguma com falta de empatia. A atitude desses dois casos em específico não deve ser generalizada como a contribuição que grandes empresas têm deixado à sociedade nesta época. Isso porque, diferente do que a reportagem nos faz ver, é possível ser pragmático, responsável e empático.

Apesar destes casos empresariais e de alguns outros tanto discursos defenderem a retomada das atividades para sustento dos negócios e da economia do país, outros grandes grupos demonstram como é possível pensar no lucro a longo prazo, afastar o grupo de risco, trabalhar em escala e manter suas atividades gerando impacto positivo para a sociedade. Iniciativas privadas também estão ajudando a diminuir essa curva de contaminação da COVID-19 de maneira a trazer resultados práticos, ou seja, usando métodos pragmáticos que ajudam a todos.

A Ambev, logo na primeira semana de contaminação extensiva, paralisou a sua fabricação de cervejas e demais bebidas alcoólicas para produzir, com o álcool etílico, em massa mais de 500 mil unidades de álcool em gel para serem doados e distribuídos de maneira gratuita em hospitais dos grandes centros afetados.

Além disso, a Gerdau, em parceria com a Prefeitura de São Paulo e o suporte do Hospital Albert Einstein, projetou construir novos 100 leitos de atendimento para possíveis contaminados com o novo coronavírus, dentro do Sistema Único de Saúde, um sistema de acesso universal à saúde de qualidade.

É possível vermos outros casos também, como a JBS, empresa alimentícia que está fabricando 2 milhões de sabonetes que serão doados para lares de idosos e em favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Assim como a empresa do mesmo ramo, Marfrig Global Foods, que doou mais de 7 milhões de reais para o Ministério da Saúde, auxiliando na compra de testes rápidos para diagnosticar casos suspeitos.

Poderia ficar aqui citando inúmeras iniciativas privadas que também deram suporte nessa ação de empatia de maneira pragmática, como o Itaú, a Vale, o Burguer King Brasil e tantas outras, mas creio que já deu para ficar evidente como é possível mesclar as duas ações sem abrir mão da principal, que é zelar pelas vidas em questão.

Veja, não estou defendendo que estas ações são necessárias para manter o aquecimento econômico, muito menos que essas empresas devem ser louvadas, apenas é uma correlação de que é possível abrir mão dos lucros agora, em prol da saúde pública e a longo prazo, recuperar eventuais danos, diferente do que aqueles dois casos acima citados fazem questão de reforçar.

Como demonstrado acima, as ideias de Dewey estão sendo colocadas em prática pelas empresas de forma responsável, sem abrir mão da empatia e de soluções eficientes para o problema em que vivemos atualmente. Eventuais ações práticas para a recuperação devem ser pensadas depois, no pós crise. Isso também é uma ação pragmática e responsável por parte dessas empresas que contribuem ativamente para o sustento do país, da economia e da manutenção de diversos empregos diariamente.

Diferente do que a reportagem nos sugere, empatia e pragmatismo podem caminhar juntos e todo o dilema de empresas entre o respeito a vidas e a retomada da economia pode ser conciliado de forma a beneficiar a todos. Sem gerar maior caos às pessoas ameaçando seus empregos, ou de sugerir que será impossível reconstruir nossa economia depois disso tudo.

Fica evidente também que o papel dessas empresas tem sido um braço a mais para somar esforços junto ao poder público em prol de diminuir os impactos dessa crise de saúde, principalmente para aqueles que mais precisam: idosos carentes, hospitais públicos que sofrem com a má distribuição de recursos públicos e com poucas vagas, além das pessoas marginalizadas nas favelas cariocas e paulistas. Sem contar todas as outras pessoas de diversos estados brasileiros que serão alcançadas com essas ações positivas por meio do SUS ou de ações pontuais e mutirões de combate à COVID-19.

Não sei bem se essas ações, que são louváveis e válidas, podem ser lidas como ‘soluções práticas de dilemas contemporâneos’, pois parece mais a famosa ‘doutrina do interesse bem compreendido’ do Tocqueville, papo para uma outra reflexão, mas têm nos feito compreender melhor como esse dilema pode ser encarado como um ato não excludente ou que ser pragmático e empático é possível;

Mesmo tendo um presidente que pouco liga para essas questões, o esforço coletivo de iniciativas privadas tem dado um suporte essencial para que não entreguemos o país à miséria e ao colapso total do nosso sistema de saúde. Ações como essas são importantes para trazer mais afago, tranquilidade e ainda que de maneira simbólica, maior confiança para a população de que esse momento será superado sem maiores danos às suas vidas. O resto resolvemos depois.

Rafaella Salles é discente em Ciências Sociais, possui formação completamentar em Relações Internacionais pela FGV e é pesquisadora pelo FGV/CPDOC.

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Rafaella Salles
Vinte&Um

Mestranda em Administração Pública. Cientista Política. Pesquisadora e escritora das minhas lamentações nos tempos vagos.