Reflexões de um Estrangeiro Morando no Brasil

Jurre van Dijk
Vinte&Um
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9 min readOct 19, 2018

Os Países Baixos, o país de onde eu vim, já foram parte do Império Franco, uma coleção de condados (cuja Holanda, a mais importante junto com Flandres, deu nome à nação que aqui surgiria) uma vez sob os Borgonheses, outra, sob os Habsburgos (~1400–1581), uma república confederada (1581–1795), um estado-tampão e parte integral do Império Francês (1795–1813) e um reino, o que ainda são hoje em dia. Apenas este pequeno resumo já mostra que a independência e a unidade (a Bélgica e o Luxemburgo se separaram) de um pequeno país europeu são frágeis. A mais recente ocupação depois dos Habsburgos espanhóis e franceses foi a alemã (1940–1945). Por muitos mais motivos do que apenas o empreendimento colonial, aconteceu que, apesar das limitações que a história lhe outorgou, hoje em dia, a Holanda é um dos países mais desenvolvidos, destacando-se entre os dez países com maior IDH do mundo (PNUD 2018). Apesar disto, escolhi vir morar e estudar aqui no Brasil em fevereiro de 2017.

Embora eu goste do povo, do clima, da comida, da natureza e de muito mais, tenho vivido preocupado com o cenário brasileiro. Tenho algumas coisas a dizer a partir do que sei do desenvolvimento de ambos ‘meus’ países. Ora, eu acredito que qualquer experiência nacional tem um valor externo muito limitado, ou seja, não pode ser repetida fora do próprio contexto. A holandesa não é nenhuma exceção neste sentido. Contudo, não acredito que também não tenha nenhum valor externo: cada experiência nacional fornece lições, modelos, fontes de inspiração que podem servir para países que buscam mudar o cenário em que se encontram inseridos. O objetivo deste artigo é oferecer o olhar comparativo de um estrangeiro e pós-graduando aqui no Brasil. Ainda na ressaca do resultado do primeiro turno das eleições, preocupo-me com a direção na qual o Brasil está andando: para longe de tudo do que eu acredito que contribui para o sucesso de uma nação.

A trajetória política holandesa

A história nacional como ensinada na Holanda costuma tratar inicialmente a época borgonhesa e Habsburgo-espanhola. Os Países Baixos condados tornaram-se posse de monarquias estrangeiras por via da política de matrimônio, prática comum na Europa medieval. Um dos principais motivos da ruptura dos holandeses com a coroa habsburgo-espanhola em 1581 foi a insatisfação de pagarem impostos sem ver retornos. Como os Países Baixos rebeldes ficaram efetivamente sem chefe de estado, surgiu então uma república meritocrática, governada não por elites do poder herdado, mas por militares bem sucedidos, os stadtholders.

Por ódio à administração anterior e tudo o que ela representava, a nova administração dos stadtholders e dos Estados Gerais (órgão legislativo e orçamentário em Haia; tornar-se-ia o parlamento democraticamente eleito apenas no século XIX), garantia certas liberdades que não havia sob os espanhóis: de opinião, de reunião e de religião. Essas liberdades fizeram florescer a arte, a ciência e o comércio. De modo geral, contando com a ausência de uma distinção entre domínio privado e público do pensamento sobre gestão pública da época, pode-se dizer que a nova administração era pouquíssimo intrometida na sociedade. Até o empreendimento colonial era financiado não por impostos, mas na bolsa de Amsterdã: podia-se investir em companhias, cuja Companhia das Índias Orientais (VOC, a primeira S.A. do mundo) ou Ocidentais (WIC, que chegou a governar Pernambuco durante três décadas) eram as mais conhecidas.

Enquanto a Holanda, a Zelândia e a Frísia, as províncias litorâneas, enriqueciam muito, as outras quatro das Sete Províncias Unidas continuavam miseráveis. Embora houvesse oportunidade econômica igual aos católicos, aos protestantes e aos judeus, esta república era altamente desigual. Isto começou apenas a mudar com a mudança do capitalismo comercial para o industrial, no século XIX (na Holanda-reino). Isto tem tudo a ver com o socialismo e com a conscientização e auto-identificação do trabalhador da fábrica.

Apesar dos sindicatos e das greves, as relações classistas nunca se tornaram tão antagônicas quanto em outros países: em 1848, a Holanda foi um dos únicos países europeus sem grandes manifestações resultando em revolução. Essas não ocorreram, porque o rei, frente ao amplo descontentamento na sociedade com a elite e a monarquia conservadoras, viu-se obrigado a revisar a constituição. Tirou poder da própria monarquia e deu-o para os Estados Gerais. Por assim fazer, ele abriu o caminho para o sistema parlamentarista harmonioso que até hoje caracteriza a política holandesa.

Nesse sistema, não há presidente — até porque o chefe de Estado (cerimonial) continua sendo, até hoje em dia, o rei. O de facto chefe de governo é o primeiro ministro, que preside o gabinete de ministros. Esse gabinete é sempre resultado de negociações de coalizão entre os partidos votados para a Câmara de Representantes dos Estados Gerais, o equivalente da Câmara dos Deputados aqui. Isto significa que o partido mais votado tem a iniciativa de formar um governo, desde que o forme junto com outros partidos eleitos e que os parlamentários destes todos (na prática, 2–4 partidos) tenham juntos uma maioria de cadeiras (76+/150) na Câmara. Em outras palavras, o sistema incentiva o diálogo entre todos os olhares sobre a sociedade, e não a batalha entre um presidente e seus ministros de um partido e a conjuntura legislativa de muitos outros no Congresso.

Em um sistema destes, obviamente não há separação entre o poder executivo e o poder legislativo. Por outro lado, o poder judiciário e as instituições democráticas não-políticas como o Banco Central e os equivalentes holandeses da Polícia Federal e da Receita Federal desenvolveram-se como instituições realmente independentes, mesmo que lentamente. É este tipo de instituição que, quando amadurecida e livre da vontade política, fornecerá as melhores armas contra a corrupção no setor público. Em 2017, a Holanda foi o oitavo país menos corrupto do mundo (Transparency International 2018).

Voltando à crescente miséria do século XIX. O trabalhador revoltou-se, mas não pela revolução como aconteceria na Rússia: ele se revoltou por via democrática, elegendo o partido social-democrata para os Estados Gerais pela primeira vez em 1888. Os social-democratas colaboravam com os liberais para melhorar, por lei, as condições do trabalhador. A colaboração com os liberais pode parecer estranha, mas ideologicamente, são parceiros naturais dos social-democratas. Isto é, grande parte dos liberais propõe a igualdade de oportunidade, fazendo com que estejam bastante na mesma linha que os social-democratas quanto a temas como a educação e a saúde. O sistema parlamentarista se beneficiava desta colaboração, também com os partidos cristãos; e o próprio sistema também beneficiava o consenso social-liberal, que de certa forma sempre tem definido o clima político holandês. O sistema e a cultura políticos se retroalimentavam. E foi assim que a democracia holandesa amadureceu, ora com mais elementos socialistas (anos pós-guerra, iniciando-se o desenvolvimento de uma rede de segurança social), ora, com mais elementos conservadores e liberais (desde os anos 1980).

O cenário brasileiro

Destaquei duas revoltas holandesas: uma contra a coroa habsburgo-espanhola no século XVI, outra, contra o poder do monarca no século XIX. A revolta brasileira a ocorrer nestas eleições presidenciais mais se parece com a nossa primeira. Como os holandeses, vocês têm ódio de uma administração indolente que recebia seus impostos e não direcionava-os para onde deveria. Como os holandeses, vocês arriscam dar lugar para uma administração apolítica e semi-militar que pouco se intromete na economia. Há algumas diferenças cruciais.

A ainda jovem democracia

A revolta holandesa foi contra um agente estrangeiro numa época pré-iluminista e pré-democrática. A revolta brasileira é contra administrações democraticamente eleitas em 2002, 2006, 2010 e 2014. Os holandeses não tinham nada a perder, mesmo colocando a administração nas mãos de militares. Os brasileiros arriscam votar em alguém que é abertamente autoritário e reverente da ditadura militar de 1964–1985 para a presidência, e militares para postos de ministros. Além disso, um poder judiciário já politizado correrá o risco de se politizar ainda mais com a pretensão do aspirante ao poder de nomear pessoalmente mais dez ministros para o Supremo Tribunal Federal (Folha de São Paulo 2018).

Os direitos individuais

Os holandeses, longe de vilificarem os católicos contra quem se rebelaram, introduziram liberdades individuais que garantiam direitos de minorias, aplicando também para os católicos que moravam no país. Esse não é o espírito da revolta brasileira. O novo salvador do povo brasileiro emprega um discurso extremamente bélico, tem um processo tramitando já na segunda instância por incitação ao estupro e prefere um filho morto em acidente de trânsito a um homossexual (Economist 2018). O estrangeiro terá lugar: contudo, apenas em campos no caso de refugiados (entrevista com Bolsonaro no Estadão 2018). Os seus adeptos vilificam um partido político inteiro, um ex-presidente julgado à prisão em um processo extremamente lacunoso (comentário por Mark Weisbrot no New York Times 2018), e a social-democracia em geral. O clima está sinistro. As agressões ocorridas neste mês, cujo homicídio ao mestre de capoeira Romoaldo Romário da Costa em Salvador foi emblemático, são um exemplo disso; para não falar no cântico bizarro no metrô de São Paulo, entre outros incidentes muitas vezes homofóbicos (El País Brasil 2018; Exame 2018).

A desigualdade

A retirada do governo da economia da Holanda-república tornou os comerciantes e os centros litorâneos ricos e deixou a classe baixa e o interior pobres. Esses efeitos distributivos ver-se-ão no Brasil, com suas aparentes desigualdades regionais, também, caso a revolta se realize. Mais do que isso, desfará as conquistas de uma iniciante social-democracia. Pouco se fala sobre isto estes dias, mas entre 2003 e 2014, mais de 29 milhões de brasileiros saíram da pobreza, a desigualdade caiu 6,6% no índice Gini e a renda dos 40% mais pobres aumentou em 2,7% a mais do que a da população geral (Banco Mundial 2018). O Partido dos Trabalhadores introduziu as bolsas ProUni e Fies, tornando mais acessível a educação superior. Os governos Lula e Dilma estenderam a solidariedade para fora da fazenda, cortando a raiz do personalismo ibérico descrita por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Por várias razões, uma nova ascendência do Partido dos Trabalhadores pode-se considerar indesejável. Certamente, os frutos da social-democracia não se encontram entre elas. Já uma ascendência de seu adversário, por razões ora apresentadas, seria péssima.

O que é preciso? A harmonia entre o poder executivo e o poder legislativo

Da história política do meu país, extraem-se dois elementos dos quais eu acredito que podem inspirar mudança de verdade na política brasileira. O primeiro é desenvolver o poder executivo de tal forma que o diálogo seja mais incentivado, como aconteceu na mudança constitucional holandesa. Este não é um argumento contra a presidência, longe disto. Na Holanda, o parlamentarismo funciona; o Brasil tem presidentes eleitos e, formalmente, isto é tão democrático quanto. No entanto, definir a democracia como apenas a vontade da maioria, o que é o caso com a presidência, leva a divisão profunda na sociedade, como se pode perceber agora. Eleger presidentes polêmicos sem vontade de debater suas ideias ameaça a democracia. Tanto o eleitor brasileiro, quanto o desenho das instituições têm um papel nisso, porque o sistema e a cultura políticos se retroalimentam. Uma sugestão para o sistema pode ser a figura do primeiro ministro como mediador entre o Congresso e a Presidência, ou um patamar regional de votos mínimos na eleição do presidente. Quando o debate voltar a se normalizar, podem-se criar políticas mais consensuais com elementos ora mais socialistas, ora, mais conservadores ou liberais, sem desmantelamento das conquistas de administrações anteriores.

A independência política das outras instituições fundamentais à democracia

O segundo elemento é o total respeito para a independência política do judiciário, do Ministério Público, do Banco Central, da Polícia Federal e da Receita Federal. Infelizmente, isto exige muita paciência. Nenhum dos candidatos ainda na corrida presidencial pretende respeitar a independência de tais instituições. Um quer aumentar o número de ministros no STF, outro, reduzir a taxa de juros (tarefa do Banco Central). A última forma de interferência é vista como ter contribuído à atual crise argentina, onde o governo mudou a meta de inflação no final do ano passado (Folha de São Paulo 2018b). A não-interferência em tais instituições torna-as maduras e capazes de manter a estabilidade financeira (o Banco Central) e de prevenir e combater a corrupção (as outras instituições). O Partido dos Trabalhadores não tem o monopólio na corrupção e sem a independência das mencionadas instituições, não tem como supor que os representantes do partido adversário não assumam comportamentos da mesma natureza.

Neste artigo, ressaltei processos e eventos na história política do meu país que podem servir como avisos e inspirações para a trajetória brasileira. Revoltas podem ser boas, porque podem levar a políticas mais inclusivas e harmoniosas. A revolta que está se realizando aqui não é. Ela é muito arriscada nas áreas da democracia, das liberdades individuais e dos temas socioeconômicos. A alternativa, além de uma tremenda falta de autocrítica, apresenta riscos financeiros. Porém, em tempos que exigem o nosso melhor, precisa ser julgada como a menos inviável. Afinal, a verdadeira e esperada mudança vem demorada. Espero por sensatez e ética na trajetória política do Brasil em que todos têm um papel.

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Jurre van Dijk
Vinte&Um
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Olá, meu nome é Jurre. Nasci em 1994 em Amsterdã. Atualmente faço mestrado em Relações Internacionais na USP. Sou o holandês mais brasileiro que conhecerá.