A revolução fonográfica dos anos 2000

A tecnologia não poupa suas origens. A inovação tecnológica de hoje muda e destrói seus antecedentes — apesar de permitir existência conjunta até certo ponto -, e se tornará obsoleta em igual maneira no futuro.

Ricardo Fontes
Vinte&Um
4 min readMar 2, 2018

--

explicaria Schumpeter que a indústria, com o mecanismo de destruição criativa, estava em contínua revolução, levando ao desenvolvimento tanto econômico quanto tecnológico. Esse efeito ocorreu — e ainda ocorre — de forma intensa em diversos setores, sendo a indústria fonográfica um exemplo ilustrativo de como essa transformação pode mudar profundamente a sociedade e os agentes econômicos envolvidos em determinado setor.

Como pode uma indústria, de crescimento acelerado desde a criação do gramofone e perspectiva de expansão ainda mais abrupta com a grande tendência de globalização da década de 1990, decrescer de forma tão acentuada nas duas últimas décadas? A título ilustrativo, os dados da RIAA (Recording Industry Association of America) para faturamento com a venda de mídia musical nos Estados Unidos (ajustados pela inflação, a preços de 2016) mostram que as vendas de CDs (tanto álbuns quanto singles) declinaram de 18,8 bilhões de dólares em 1999, seu pico, para 8,6 bi em 2007 e 1,2 bi em 2016, 94% a menos do que às vésperas do novo milênio.

Vendas de mídias musicais entre 1974 e 2016, valores ajustados a preços de 2016 em milhões de dólares. Fonte: RIAA. Reprodução gráfica PrettyFamous | Graphic.

A explicação está na quebra de barreiras promovida pela internet. Antes, o veículo de conexão digital configurava um grande ambiente para expansão das vendas de gravadoras, que agora teriam uma capilaridade muito maior para atingir novos mercados consumidores com seus produtos. Contudo, com a ascensão da mídia digital Mp3, sites e programas de download e troca de música ilegalmente como o Napster se tornaram cada vez mais populares. E, devido à baixa capacidade de regulação de ambiente cibernético, principalmente nos primeiros anos da internet, quando era praticamente inexistente qualquer legislação em ambientes virtuais, era extremamente difícil punir e coibir a atividade de pirataria musical a nível global.

Capa da revista TIME de 2 de outubro de 2002. Na imagem, a foto do criador da plataforma Napster, primeira plataforma que trouxe à tona diversos problemas de direitos autorais no compartilhamento de música online. No Napster, era possível trocar gratuitamente música com outros usuários, sem qualquer respeito a leis de direitos autorais. A plataforma foi levada à justiça por diversos artistas, entre eles Metallica e Dr. Dre. Foto de Gregory Heisler

As vendas de música pelas gravadoras tradicionais começaram a declinar abruptamente, tanto por causa da substituição do CD pelo Mp3, principalmente por meio de download ilegal, quanto pela expansão de CDs piratas em meados da década de 2000 (os quais, muitas vezes, eram fruto do download ilegal de música e depois a conversão para o formato de um CD).

No final da década de 2000, contudo, surgiram tecnologias que permitiam conexões de internet muito mais velozes, e diversas plataformas que se utilizavam disso. Com internet mais rápida e fácil, o streaming online começou a se popularizar. Em um primeiro momento, pareceu um alívio às gravadoras: por facilitar o acesso à música, as pessoas estariam dispostas a pagar um pouco para não ter de comprar um CD nem realizar atividades ilegais como a pirataria musical. Entretanto, mudanças no setor levaram a essa situação não ser o alívio esperado pelas gravadoras.

Primeiramente, plataformas como o YouTube, que se popularizaram no final da década passada, permitiam a divulgação rápida e fácil de novos artistas, principalmente com o advento das mídias sociais. Isso tirou o interesse de diversos artistas de assinar com uma grande gravadora sob cláusulas de contrato super restritas e exigentes, uma vez que se tornava muito mais simples divulgar e tornar seu trabalho mais conhecido.

Com isso, o poder de barganha das gravadoras se tornava cada vez menor e perdiam diversos artistas que se mostravam potenciais formas de renda. Além disso, o streaming musical, com o nascimento de plataformas como Spotify e Apple Music, enterrou a maior fonte de renda das gravadoras até então, o CD. O disco físico perdeu espaço completamente: são cada vez mais raras lojas de CDs, e muitos dos nascidos na década de 2000 se quer tiveram contato grande com a mídia. Grandes lojas de departamento extinguiram ou reduziram acentuadamente suas áreas de vendas de CDs, e grandes vendedores especializados, como a FNAC — que recentemente abandonou atividades no Brasil -, Saraiva e Livraria Cultura, diminuíram consideravelmente a parcela dos CDs de música no seu faturamento.

Fora isso, com a possibilidade de ainda fazer o download ilegal de música online e ampla opção de concorrência, o consumidor tem poder de barganha suficiente para evitar uma escalada de preços acelerada das plataformas e forçar um baixo custo dessas. Assim, com baixo poder de barganha para com o artista, o qual pode disponibilizar suas músicas nas plataformas e divulgar seu trabalho por conta própria, as gravadoras são obrigadas a aceitar uma baixa renda.

O resultado desse mecanismo é uma diminuição ampla do poder de barganha e renda das gravadoras (intermediadores) tanto no contato com o serviço de streaming (distribuidor) quanto com o artista (produtor). A tecnologia acabou com um poder exacerbado de um pequeno grupo de grandes gravadoras e forçou-as a expandir suas atividades em outros setores e diminuirem o foco na produção de artistas.

Ironicamente, para os audiófilos e fãs, o CD acabou sendo substituído, mesmo que marginalmente, pelo próprio produto que substituiu no passado: o disco de vinil. Devido a sua qualidade de mídia ainda superior que a maior parte da música disponibilizada online e que o CD, foi adotado por um movimento tanto de nostalgia quanto de especialistas em áudio.

Nos últimos anos, o vinil ter recuperado, mesmo que aos poucos, espaço dentro das vendas físicas de mídia musical, contra declínio contínuo do CD. Foto de loja de discos de vinil em Austin, TX, EUA. Fonte: Waterloo Records/Facebook

E dessa forma, a tecnologia destruiu a forma como música era consumida durante quase um século, e mudou completamente a forma com a qual os agentes socioeconômicos se relacionam com ela. Qual será a próxima mudança que a inovação tecnológica nos reserva?

Ricardo Fontes é estudante de economia na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP

--

--

Ricardo Fontes
Vinte&Um

Estudante de economia na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, 20 anos.