Sobre constituintes e constituições

Com uma Constituição que pode ser amplamente alterada, a quem interessa promover uma nova constituinte no Brasil?

Matheus Leone
Vinte&Um
4 min readOct 26, 2020

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Não pretendo aqui falar do caso chileno que tomou os jornais após aprovação, em plebiscito, da convocação de uma nova constituinte para enterrar a constituição herdada da ditadura Pinochet. O que quero abordar é o tipo de discurso que volta e meia surge no Brasil sobre a necessidade de uma nova constituição. O líder do governo na Câmara dos Deputados, deputado Ricardo Barros (PP/PR), já levantou o assunto, falando em um plebiscito para “reformar a constituição”, mas isso é algo que eu já ouvi até de alguns liberais.

As críticas possíveis à nossa Constituição são muitas e com algumas até concordo. No entanto, é preciso sempre parar um pouco para pensar no que se está propondo e nas consequências que podem surgir de um processo constituinte.

Pois bem, primeiramente é importante lembrar que constituições são frutos de processos históricos bem como da conjuntura presente. No caso da nossa, tivemos um período ditatorial de repressões políticas e sociais que desembocaram na constituinte dos anos 80. Qual era o retrato daquele momento histórico? Um país que se redemocratizava com demandas sociais e políticas represadas por 21 anos de ditadura. Assim, a pressão social sobre os constituintes foi no sentido de ampliar direitos e de constitucionalizar grande parte dos temas. Pode ter sido um erro? Pode, mas é errôneo imaginar que poderia ter sido tão diferente dada a conjuntura do país.

Em segundo lugar, acreditar que há pontos na nossa constituição que precisam ser reformados não quer dizer necessariamente que uma nova constituição é necessária. Se erros houve no texto de 1988, é preciso lembrar que passamos por uma revisão constitucional 5 anos depois e, além disso, mais de 100 emendas constitucionais já foram aprovadas de lá até aqui. Ou seja, nós mudamos nossa Constituição mais de 100 vezes nos 32 anos de sua vigência. Isso não me parece uma constituição rígida. Ela própria já prevê o seu emendamento, o poder constituinte derivado, e nos diz, no § 4º do artigo 60, quais são os temas que não podem ser objeto de emendas. Vamos ao texto constitucional:

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I — a forma federativa de Estado;

II — o voto direto, secreto, universal e periódico;

III — a separação dos Poderes;

IV — os direitos e garantias individuais.

Assim, não posso deixar de perguntar: podendo a grande parte da Constituição ser alterada (e inclusive suprimida) por emenda constitucional, qual é o interesse em um processo constituinte? Seria, talvez, para alterar justamente as cláusulas pétreas? E a quem interessa a alteração desses pontos?

Processos constituintes são como um tiro no escuro. Todos nós temos uma visão de como seria a constituição ideal, do que deveria estar lá ou não e de que forma deveria estar. E este é justamente o dilema das constituintes: quem vai redigir o texto constitucional é a maioria de momento, com plenos poderes para decidir sobre qualquer coisa, inclusive sobre as cláusulas pétreas que hoje temos como dadas (os incisos I a IV do art. 60).

Na prática estamos falando de poderes absolutos para uma maioria de momento traçar os direitos e garantias individuais de todos os cidadãos, inclusive da(s) minoria(s). Como o poder constituinte é sempre absoluto (papo de constituinte exclusiva não faz o menor sentido), não há mais garantias de manutenção de nenhum direito, e nem dos limites institucionais ao poder do Estado como a separação de poderes.

Assim, uma constituinte é imprevisível. Os liberais que falam em fazer uma nova constituição acham que é a visão deles que vai prevalecer no processo? Eu duvido muito. Prefiro não arriscar. No fim das contas, podemos reclamar do status quo, entrar em um processo constituinte pedindo A e sair com um Z pior do que o status quo. Não há controle nenhum. Não há garantias prévias. Não há limite ao poder constituinte originário. E aí? Fazemos o que depois? Vamos tentar derrubar mais uma constituição?

Assim, eu sempre me coloquei e provavelmente me colocarei contra discursos e movimentos que visem rasgar a nossa Constituição de 1988 (que tem apenas 32 anos) para nos jogar no precipício da imprevisibilidade. Faço isso porque fico a me perguntar quais são os interesses por trás desse tipo de vontade. Como eu disse, podendo nossa Constituição ser amplamente reformada, por que o interesse em um mecanismo que permite justamente a alteração das cláusulas pétreas?

Nossa constituição não é perfeita, mas sob seu manto temos conseguido manter uma democracia por 32 anos em um país acostumado com tropeços autoritários e rupturas institucionais. Nosso período democrático hoje já é maior que a ditadura que o antecedeu. Nossa democracia é imperfeita (e não conheço uma que seja perfeita), mas os direitos e garantias individuais garantidos pela Constituição são justamente aqueles que nos resguardam de abusos estatais, que preservam nossa liberdade política e têm impedido arroubos autoritários maiores. Eu sabia que o caso do Chile acabaria por reviver esse tipo de discurso no Brasil, mas é missão dos democratas se opor a esse tipo de pauta ainda no início. Afinal, o que vocês acham que sairia de uma constituinte feita agora? E a quem interessa uma nova constituinte com poderes ilimitados? Pensem nisso.

Matheus Leone é cientista político formado pela UnB, coordenador do LIVRES no Distrito Federal e criador da Vinte&Um

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Matheus Leone
Vinte&Um

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