Sobre o voyeurismo

De voyeurs e loucos, todos temos um pouco?

Matheus Leone
Vinte&Um
7 min readApr 20, 2018

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Andreas Kock

“Hoje foi a realização e concretização de um sonho que ocupou minha mente e meu ser por tanto tempo. Comprei o Manor House Motel, e esse sonho se consumou. Finalmente, serei capaz de satisfazer meu desejo constante e incontrolável de espiar a vida de outras pessoas. Meu ímpeto de voyeur será agora posto em prática num plano mais elevado do que qualquer pessoa já contemplou. Meus contemporâneos só poderiam sonhar com o que vou realmente fazer com as instalações do Manor House Motel.”

Em 1965 Gerald Foos escreveu tais palavras no seu diário. O diário de um voyeur, trazido à luz pelo brilhante escritor Gay Talese (2016). Foos, um empresário do Colorado, comprou um motel nos arredores de Denver e lá, de maneira engenhosa e meticulosamente calculada, o adequou para que — de uma passarela no sótão — pudesse espiar os quartos através de respiradouros ludibriosos instalados no teto de cada cômodo. O fez por cerca de 15 anos sem nunca ter sido descoberto, mantendo detalhadas anotações do que via, sentia e pensava. O voyeur!

Criado em uma fazenda, Foos cresceu sentindo-se sozinho, apesar de não ser filho único. Já na adolescência descobriu um prazer pessoal: espiar sua tia, que morava na casa ao lado, enquanto ela trocava de rouba em seu quarto. Ao lembrar-se dela, afirma que tinha seios grandes e cabelos vermelhos e via em seu tio uma figura inadequada para a bela dama que lhe despertava prazeres pueris. Diz que seus impulsos voyeurísticos vinham daí, da infância, da tia Katherine pela janela.

Gerald Foos na recepção de seu motel nos anos 70

Em diversos momentos de seu diário, Geraldo Foos nos diz que “quase todos os homens são voyeurs”, o que afirma não ser o caso para as mulheres. O importante, no entanto, é a forma como se via o voyeur do Colorado. Não era um bisbilhoteiro. Não era um mero curioso, nem mesmo um delinquente sexual, e sim uma espécie de cientista. Como nos diz o próprio Gay Talese:

“Por necessidade, Foos existia nas sombras, e fez isso com sucesso que achava ser digno de nota — ao mesmo tempo que criava um laboratório excepcional para o estudo do comportamento secreto, pelo qual também acreditava merecia algum crédito. Do momo como via as coisas, não era um escabroso bisbilhoteiro, mas um pesquisador pioneiro cujos esforços eram comparáveis aos dos renomados sexólogos do Instituto Kinsey e do Instituto Masters & Johnson. Grande parte da pesquisa e da documentação nesses locais foi obtida enquanto se observavam participantes voluntários, enquanto suas cobaias nunca souberam que estavam sendo observadas e, portanto, ele considerava suas descobertas mais representativas do realismo inconsciente e não adulterado.” (p. 100)

Confesso que quando li o livro de Talese comecei a refletir sobre quantas coisas já havia lido sobre o voyeurismo de forma geral, seja do ponto de vista da psicologia ou até mesmo da filosofia. Sem sucesso. Ora, como um tema dessa envergadura — a curiosidade sexual humana levada ao extremo — pode passar sem os devidos questionamentos? Como um tema que se insere em filmes como Janela Indiscreta, do grande Alfred Hitchcock, seja ainda tão pouco investigado?

Não digo que nada haja escrito de maneira séria sobre o assunto. Há, mas se fizermos o pequeno exercício de pesquisar no google os termos “BDSM” e “Voyeurismo” veremos que a discrepância é absurda, talvez não tanto do ponto de vista acadêmico, mas principalmente em termos do que se insere na cultura geral através de revistas, sites, etc.

Enfim, do que estamos tratando quando falamos de voyeurismo, e como isso dialoga com a história de Foos?

Do ponto de vista mais restrito, sexual, o voyeurismo é o prazer sexual oriundo da observação de pessoas nuas, se despindo, se masturbando ou fazendo sexo. Isso pode se dar, basicamente, de duas formas: tendo o objeto ciência de que está sendo assistido ou não. Tenho para mim que uma visão realmente restritiva do voyeurismo é que ela implica o desconhecimento do objeto, tal como as “cobaias” de Gerald Foos em seu motel. A visão mais ampla do conceito de voyeurismo é sociologicamente desprovida da obrigação sexual. O conceito foi sendo expandido para abarcar, por exemplo, a curiosidade para com a vida alheia, principalmente na retratada, por exemplo, em reality shows.

Aqui me interessa o voyeurismo restrito. Roots. Nesse sentido, quando estiver usando o termo estarei me referindo à observação de objeto que desconhece tal observação. Tal como fazia Foos.

Não é impróprio admitir que de voyeurs todos temos um pouco. O desejo sexual humano é obviamente ativado — primeiramente — pela visão. O que vemos, gostamos, o que gostamos nos atiça. Entretanto, o que levaria uma pessoa a esforços tão grandes para assistir a uma pessoa em seu momento mais íntimo? Exatamente isso, o ser humano em seu momento mais íntimo de privacidade.

Abordei há algum tempo a questão das personas e do “verdadeiro eu”. Se entendemos que todos apresentamos “máscaras” para a sociedade de forma geral temos que imaginar também que o “verdadeiro eu” se apresenta nos momentos mais íntimos do ser humano, quando se acha sozinho, ou em um momento de intimidade corporal que é o sexo.

Nesse sentido, o voyeur obviamente busca não apenas ver uma pessoa nua, ou pessoas fazendo sexo. Isso pode ser visto na internet (o pornô, inclusive, é uma forma mínima de voyeurismo). O que estamos falando aqui é de ver as pessoas no ápice da sua privacidade. O que faz quando acredita não ter ninguém a sua volta. Quem é a pessoa quando a cortina se fecha e a máscara cai? É nesse sentido que o voyeurismo não é simples excitação visual. É visual, mas é muito maior que isso.

Tenho para mim que a falta de abordagem acerca do tema tenha a ver com a óbvia conotação negativa que a prática tem, principalmente em países que a consideram crime. Não é o caso propriamente dito do Brasil. Aqui nós a entendemos como uma contravenção penal, no âmbito da importunação ofensiva ao pudor. O fato é que pouco se fala sobre o voyeurismo, que está longe de ser infrequente.

Hans Weiditz — século 16

Em um relato de caso, Schorr, Reichelt, Souza, Aragão, Valério e Telles (2017) trazem dados relativos à difusão dos impulsos na sociedade. Afirmam os autores que “em estudo conduzido por Oliveira Júnior & Abdo, com 7.022 indivíduos das cinco regiões brasileiras, encontrou-se uma prevalência de 13% de comportamento voyeurista na amostra, sendo este o segundo comportamento sexual não convencional mais frequente entre os estudados. De modo similar, estudo realizado com amostra representativa da população sueca permitiu identificar que 7,7% dos entrevistados já havia referido interesse e/ou comportamento voyeur” (p. 39). Em texto anterior acerca dos fetiches, questionei meus seguidores no Instagram acerca de diversas práticas. 58% dos entrevistados responderam que já assistiram alguém se masturbar ou fazer sexo, enquanto 62% afirmaram que gostariam de fazê-lo. Portanto, não dá para dizer que se trata de algo incomum na sociedade.

Talvez, sinceramente, a questão esteja justamente aí. É muito comum. Em maior ou menor grau, mas comum. Quem, dada a oportunidade, não gostaria de assistir alguém no seu momento mais íntimo? Quem não gostaria de conhecer as pessoas pelo que elas realmente são e não pelo que aparentam ser? Quem nunca disse a boa e velha frase “eu queria ser uma mosquinha para ouvir/ver…”.

No âmbito sexual não há de ser diferente. Em maior ou menor grau, as pessoas têm interesse em violar a privacidade alheia, principalmente sem o consentimento do objeto. O direito à privacidade — certamente — é valor fundamental muito importante e sua violação não deve ser vista com bons olhos, mas é preciso reconhecer que a curiosidade talvez seja o impulso humano mais incontrolável.

Nesse sentido, a falta de investigações profundas acerca do tema pode ter a ver justamente com esse pecado coletivo que todos carregamos. Todos sabemos que somos voyeurs, no sentido mais restrito ou no sentido mais amplo. Talvez investigar a fundo o voyeurismo seja uma caixa de pandora que ninguém quer correr o risco de abrir. A questão é: onde está a curiosidade nesse caso?

Matheus Leone é cientista político e editor-chefe da Vinte&Um

Referências:

Schorr, Reichelt, Souza, Aragão, Valério e Telles. Voyeurismo: relato de caso. Revista Debates em Psiquiatria — Nov/Dez 2017, p. 38–41.

Gay Talese. O Voyeur. Companhia das Letras, 1a edição. São Paulo, 2016.

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Matheus Leone
Vinte&Um

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