arte: Nayara Brida

À BOLONHESA

Editora Prezinha
VINTE
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2 min readFeb 1, 2022

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João Pedro Camargo

Imagine que de uma das suas narinas, no lugar de desenhar-se o caminho tubular para o seu pulmão, estas mesmas paredes de mucosa dão para um outro compartimento. nesse compartimento está a sua alma e que ela é um vazio úmido do mesmo material destas paredes mucosas. É a rua sem saída no final do caminho tubular até aqui.

Na parte inferior desse nada, contudo, uma textura desértica aparece em absoluto contraste ao suor que envelopa as paredes do cômodo. São 3,14159 centímetros de espessura criados por um complexo de golgi em atividade compulsória. Resposta, evidentemente, às marteladas que, por fora, o invólucro da alma ainda em broto já sofria. O frio e seus parentes, principalmente. A secreção produzida petrificou-se ali de modo que essa característica árida instalou-se na alma sem que ela percebesse que aquilo não a pertencia. Era um excesso.

Enfrentando o frio, ainda assim, vingou o invólucro da alma. Obviamente sem chegar a sua máxima potência, mas sobreviveu. Veio, então o calor. Inesperado e longevo. Um calor que dura até hoje. Como se uma estrela de um porte similar ao do sol tivesse cruzado o horizonte da terra em sua trajetória circular pelo espaço. Enquanto o calor possibilita ao broto a fotossíntese necessária para crescer, a secura no fundo da alma ainda impede a natureza de cumprir sua agenda. Nasce, cresce, reproduz, morre. Ficamos em algo como nasce, ensaia crescer, nasce, ensaia crescer, nasce, ensaia crescer…

Foi então que uma mudança de percepção mudou o curso da história. O jeito foi engolir uma espátula de peixe. Dessas metálicas, brilhantes, quase cortantes. Sem medo, encostá-la na parede do nariz e fungá-la para dentro escorregando-a pelo tubo de muco. Ao chegar na rua sem saída é que o ensaio do crescimento impulsionado pelo calor do sol vira ação. No estica e puxa das paredes do nada, o nada toma inúmeras formas e balança a espátula de peixe dentro de si. Nesse remelexo, as arestas da espátula esfoliam, escavam, arremessam, perfuram e fatiam o deserto ali no fundo. Passaram-se dez anos.

A espátula derrotou o terreno arenoso que, no espasmo do choro, devolveu ao mundo, pela abertura da narina, o chumbo do passado regurgitado. O invólucro virou gente. Esses dias, ele fez uma bolonhesa. Na décima oitava vez que o fez, descobriu algo fundamental sobre ela: o segredo é deixar a carne quase queimar no fundo da panela. Jogar vinho, ouvir o barulho, limpar o caramelo, juntar o tomate, esperar apurar e comer. Nascer, crescer, prazer, morrer. Que deus nos tenha.

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