arte: Leco Rezende

CAÇA AO SOL

Editora Prezinha
VINTE

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Roberto Saraiva

O sol não bate mais na parede da sala de casa pela manhã. Até o mês passado cobria tudo, mas foi recuando cada dia mais até sumir de vez. Adeus por ora ao calor na cara amassada de sono, ao banho de sol diário, direito desta vida de clausura. Em São Paulo, pegar chuva na rua tornou-se anos atrás minha conexão derradeira com a natureza. Hoje me contento em observar a movimentação e os padrões da luz mudando quase imperceptivelmente a cada ciclo diário. O negócio é esperar até 2021 mesmo.

Na tela do computador releio a história de Sônia. Quando jovem ela passeava pelo Brás no intervalo do turno na fábrica e ficou sobressaltada com o retrato de um homem na vitrine de um estúdio de fotografia. Sem conseguir esquecer seu rosto, acabou pedindo ao fotógrafo para vendê-lo, não sem antes insistir. Tratava-se, afinal, de pedido insólito, aquilo era o mostruário. O tempo passou e sua irmã lhe apresentou um moço que encontrara no trem. O mesmo da foto. Sônia disse já conhecê-lo pois o havia comprado, sacando da bolsa o retrato. Viveram 53 anos juntos.

O quarto agora está inundado pela minha golden hour particular. O termo corrente no Rio de Janeiro refere-se à luz dourada típica dos últimos minutos do entardecer. Em Ipanema, é hora de levantar da canga e fazer selfie. Aqui a recebo de segunda mão, reflexo do sol poente nos prédios do outro lado da Praça do Rink.

Enquanto reviso as frases, reflito sobre a tragédia contratada, mas não concretizada, da vida de Geraldo. Completamente apaixonado pela sobrinha do vizinho, ficou desesperado ao descobrir que após três meses de visita em São Paulo ela retornou à sua Iguatu natal, no interior do Ceará. Ele trocara com ela talvez um par de palavras, mas a observava constantemente pela janela de casa.

Com a determinação dos corajosos e dos tolos, tomou uma série de ônibus até a cidadezinha e, dias depois, chegou lá antes do alvorecer. Demorou um pouco até encontrar a casa dela, e quem atendeu a porta foi a irmã. Geraldo disse ser o namorado da moça, viera para o casamento deles, fariam a vida no Sul depois. E viu delírio tornar-se realidade em frente aos seus olhos.

O apartamento onde vivo, como todos os outros deste edifício antigo, foi projetado para ficar de costas para o mar da Baía de Guanabara — a melhor vista daqui, com direito a pôr do sol na ponte Rio-Niterói, fica no corredor. Mas não dá para reclamar: as cores do crepúsculo e sua rápida transformação refletem gloriosas diretamente na minha janela. Hoje foi lindo de ver.

Francisco tinha um hábito familiar curioso e muito revelador de sua personalidade. Nos tempos em que São Paulo era ainda mais fria, todo dia antes do amanhecer buscava uma das três filhas no quarto onde elas dormiam e a trazia desacordada em seus braços até a cama onde a esposa ainda ressonava. Repousava o pequeno corpo justamente no espaço vago e quentinho deixado por ele e partia para o trabalho. Cada dia era a vez de uma. Na volta do serviço, suas meninas provavelmente já estariam novamente adormecidas.

A análise agora é por telefone, e a rede da sala meu novo divã. Estou divagando sobre a vida e suas mudanças. Sobre as implicações de curto e de médio prazo dessa existência reclusa. Sobre a excitação de jornalista ao ver o desenrolar inexorável e brutal da História de uma maneira inimaginável para a minha geração.

O raciocínio se perde na descoberta muito mais urgente: é possível, em um momento específico da tarde, discernir as águas da Baía refletidas nas janelas espelhadas do prédio de escritórios do outro lado da praça. Moro com uma espécie de vista para o mar há dois anos, mas só descobri isso agora. Minha analista também pareceu feliz com a novidade.

A prole de Jorge vivia entre a apreensão e a excitação cada vez que o pai buscava na estante seu livro de receitas de diferentes países do mundo. Começava ali um jogo divertido e arriscado em igual medida. Abrindo uma página aleatória, contava a todos sobre a culinária e sobre os costumes daquele povo e determinava o prato do dia. Os resultados, porém, variavam entre o aceitável e a catástrofe. Reclamar era proibido: “pensa que na Índia todo mundo adora essa comida, se eles comem vocês também têm que comer”. Coloco o ponto final com um sorriso no rosto.

Oito andares abaixo, o incomum silêncio do centro da cidade ensolarada é interrompido pelo barulho das motos dos entregadores, acelerando desimpedidas pela ausência de trânsito. Será preferível o murmurinho constante da cidade aos espasmos sonoros das motocicletas? Não sei, já não me recordo tão bem dos ruídos da metrópole a todo vapor, mas os passarinhos certamente aprovaram as mudanças.

Reconto com inveja as desventuras de Vânia aos 68 anos na viagem de sua vida. Um dia fez as malas e partiu para viver um mês incomunicável entre os índios da tribo Ticunas, na fronteira do Brasil com a Colômbia. Missionária, já os ajudava à distância, mas sentiu ali que aquele era o momento de ver e de viver o mundo. Voltou de lá doente, desidratada, com o corpo coberto de picadas de insetos. E absolutamente realizada.

Há um latifúndio de céu azul na janela, cortesia do espaço deixado pela praça e da colina baixa atrás dela. Em São Paulo isso configura uma “vista”, com certeza estaria na descrição da imobiliária. Mas aqui ela vem com um preço. Se o sol é sazonal, os tiroteios não são. A disputa pelo controle da favela do Morro do Estado ocorre entre Comando Vermelho (CV) e Terceiro Comando Puro (TCP). E se intensificou nos últimos tempos. Geralmente não passa de cinco minutos por vez, e se antes eu me perguntava se “era tiro” — esse grande questionamento carioca — hoje já acho inconfundível.

Quando a poeira se assentou após a partida do pau de arara, ficou apenas metade de um par de chinelo velho no chão. Pego de surpresa com a curta duração daquela parada no sertão de Alagoas, Vladimir precisou correr para não ficar para trás. Ainda faltavam três dias de viagem até São Paulo, onde desembarcaria parcialmente descalço, mas pronto para construir um império como vendedor de churrasquinho.

Foi só prestar um pouquinho mais de atenção para notar que a copa de uma das árvores da praça estava púrpura à luz das 6h da manhã, um destaque especial no cobertor verde que bloqueia a vista do piso arenoso abaixo. Fico me perguntando há quanto tempo ela está desse jeito. Na semana seguinte, as folhas reverteram a um tom esverdeado um pouco mais leve, enquanto um ipê amarelo floresce ao lado.

Os policiais não encontraram Cacau em casa quando foram prendê-lo. Ele já havia sido notificado sobre a rádio pirata instalada lá — basicamente computador, mesa de som e uma antena no telhado, transmitindo a um raio de 1km. Programação musical, interrompida apenas para recados ou brincadeiras de amigos. Os vizinhos contaram aos confusos PMs: ele havia saído pela manhã, dentro de um caixão. Naquele momento, o velório lotado de amigos e de parentes celebrava a vida do fundador da escola de samba Perdição, de Guarulhos.

Todo entardecer, por volta das 17h30, há uma catarse debaixo da minha janela. ACABOU K Ô, É A VEZ DO CAMELÔ!, bradam caixas de som distorcidas o jingle do candidato a vereador Fernando Carvalho (PC do B). Depois de semanas expostos ao irresistível ritmo de funk carioca antigo, os ambulantes do entorno da praça compraram a ideia e cantam junto. A rua vira uma grande e barulhenta festa. No fim, ele não se elegeu.

Gabriela era uma menina um pouco prodígio. Extrovertida, falante, brincalhona, inspirava-se na miríade de Youtubers povoando seu celular. Queria também ser estrela, cantora, apresentadora. A família, entre fascinada e divertida, estimulava os dotes artísticos já evidentes na criança de oito anos. Um inocente convite para brincar na casa da vizinha no condomínio fechado onde a família passava os finais de semana, em Maresias, passou pelo crivo super protetor dos pais.

Mas o imponderável se impôs, e ela não voltou. Um acidente com a rede, algo raro, imprevisível, uma fração de segundo, um ponto final. Gabriela se despediu como se despediram todos os protagonistas dessas e de todas as histórias — de vidas curtas e longas, de caminhadas com encontros e desencontros, com amor, frustrações e sonhos.

Termino mais uma frase, fecho o computador. Lá fora, mais uma vez brilha o sol, indiferente.

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Editora de zines focada em projetos coletivos e experimentação gráfica fazendo a preza pelas amizades que querem publicar