sobre a ética da greve

Nayara Peneda Tozei
virei professora… e agora?
3 min readMay 27, 2014

Texto de Aluízio Couto, escrito para este blog

Após fazer uma rápida busca na internet, percebi que praticamente inexiste qualquer referência à ética da greve. No entanto, determinar quando é moralmente legítimo cruzar os braços e, uma vez deflagrada uma greve, como os poderes de barganha devem se confrontar, são problemas interessantes. Talvez eu não tenha achado nada porque fiz a busca em inglês. Embora a filosofia anglo-saxã seja rica e frutífera, é possível que as greves não ocorram de modo tão frequente a ponto de justificar mais um puxadinho nas dezenas de assuntos que compõem a ética aplicada. Decidi fazer a busca em português. Nada de relevante. O que me surpreende é não haver no Brasil uma discussão razoavelmente sistemática e serena sobre o assunto, pois por aqui greves são parte da paisagem. A surpresa se dissipa um pouco com a constatação de que o raciocínio filosófico original nunca foi nosso forte.

Não vou fazer aqui muitos posicionamentos substanciais. Quero apenas imaginar como poderíamos delinear o início de uma discussão sobre a ética da greve. Em primeiro lugar, é razoável distinguir entre as greves em empresas privadas e públicas. Via de regra, o vínculo entre empregador e empregado na esfera privada diz respeito somente a essas partes. É claro que a paralisação de uma linha de montagem pode afetar as preferências de quem prefere um determinado produto. Mas se pode, em todo o caso, optar por um produto equivalente. A ideia central é a de que os interesses da demanda não podem ser usados como objeção a uma greve no setor privado. Seria implausível dizer que eu tenho algum direito ao funcionamento da fábrica da Fiat.

No setor público as coisas são distintas, parece-me. Servidores públicos existem para fornecer serviços que, a princípio, fazem parte dos direitos das pessoas. É dever dos agentes estatais garantir o bom funcionamento da máquina do estado. Portanto, os interesses da demanda devem ser levados em consideração. O equilíbrio do poder de barganha é um assunto à parte e vale a pena inseri-lo na discussão sobre serviços públicos. Preliminarmente, penso o seguinte: em qualquer disputa com pontos de vista radicalmente opostos e com argumentos complexos de ambos os lados, a força de ambos os lados deve se equivaler. Quando grevistas decidem parar um serviço essencial e o estado nada pode fazer, eles estão efetivamente impondo as próprias demandas sem dar chance de defesa ao outro lado. Se o estado não puder reagir com, digamos, cortes salariais, a vontade dos grevistas sairá vitoriosa sem que tenha havido uma disputa legítima. Desnecessário dizer que o mesmo ocorre quando o poder discricionário do estado não encontra restrições.

A exigência desse equilíbrio pode se fundamentar no seguinte: como frequentemente é difícil saber quem está com a razão e se há alguém com a razão, a atribuição desigual de forças é arbitrária. Notemos que a igual atribuição de forças não funciona como um princípio categórico, pois seria ridículo aplicar algo assim em uma disputa que envolvesse trabalhadores judeus subjugados a um estado fascista. Nesse caso extremo, equilibrar as forças é trabalhar em favor de um estado monstruoso. A moralidade requer que o equilíbrio de forças seja desigual em favor dos trabalhadores. Conflitos comuns, ao contrário do que sugerem os grevistas mais exaltados, não são assim. Portanto, não vejo razões para uma atribuição desigual de forças.

Existem outros problemas interessantes. É legítimo que grevistas constranjam eventuais fura-greve? Dizer que sim sugere que os discordantes têm o dever de participar de algo do qual eles discordam. E se os grevistas podem constranger alguém a não trabalhar, por que o estado não poderia constranger os próprios grevistas a trabalhar? Se os grevistas reivindicam o direito de não trabalhar quando pensam que as condições são más, parece que deveriam concordar com o direito ao trabalho daqueles que pensam que as condições não são más. Brandir o direito à paralisação quando se está insatisfeito e negar o direito ao trabalho quando se está satisfeito é o mesmo que negar ao outro não apenas o direito à discordância, mas também a possibilidade de agir conforme a própria consciência, possibilidade, vale dizer, sempre que possível agarrada pelos próprios grevistas.

Penso que vários outros problemas poderiam ser suscitados. E não faria mal que essa discussão entrasse nos departamentos de filosofia, economia, administração, gestão pública e outros. Resta torcer para que não haja cadeiras empilhadas na porta dos departamentos quando o assunto amadurecer e quiser entrar.

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