Gabriela Biló e a captação do caos.

Remando contra a efemeridade do jornalismo diário, a fotógrafa clica imagens que viajam no tempo.

Diogo Dias
Visuais Virais
4 min readApr 30, 2020

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Desde o surgimento das pinturas históricas, podemos colocar as imagens como elementos de grande importância na constituição das narrativas históricas. Com seus poderes ilustrativos, as imagens produzidas para serem chamadas de históricas ajudaram a compor a credibilidade dos acontecimentos, mesmo com todo o tipo de influências interessadas em moldá-las de acordo com um futuro desejado, a despeito do passado.

A fotografia nos trouxe uma certa ilusão de impessoalidade, como se fosse possível retirar das imagens fotografadas qualquer subjetividade e registrar com fidelidade total um instante do real. Ilusão que, mesmo cheia de boas intenções, em alguns casos, não puderam esconder uma inevitável tomada de posição diante da fotografia. Se Vertov quis uma imagem pura do real, acabou no máximo criando uma assinatura própria, marcando o cine-olho para sempre com sua subjetividade. Enfim, produzir imagens, mesmo fotográficas, é uma contradição inescapável. Mostrar o que está aí para todos verem, mas com o olhar subjetivo do fotógrafo. Para muitos não restou alternativa senão render-se ao paralelo com as artes plásticas e dizer: nas fotos, pinta-se ou esculpe-se com a luz.

Saltando arbitrariamente no tempo, caímos em uma tempestade de imagens que acontece em meio a um caos maior. No ritmo implacável do capitalismo tardio, estamos cada um com a sua câmera-olho, mas sem qualquer assinatura. Milhões de imagens digitalmente produzidas por smartphones circulam, cada dia mais treinadas pelos cacoetes impostos pela publicidade e pela indústria do entretenimento. Mas, em meio a esse oceano de imagens plenamente esquecíveis, um olhar me chamou a atenção.

Gabriela Biló, fotojornalista, colocou no mundo duas fotografias que quase imediatamente ganharam status de históricas para o Brasil. Mas é preciso fazer uma distinção. São imagens históricas não à maneira das pinturas de Pedro Américo ou Victor Meirelles, que construíram cenas a partir de narrativas predeterminadas, de projetos de poder coloniais. As fotografias de Biló são históricas pois convergem com o contexto histórico em que surgiram. O clique, muito mais rápido que qualquer pincel, auxilia nessa convergência, mas não é tudo. As lentes da fotógrafa captaram em tais imagens pontos de encontros entre o passado recente e o presente.

Vamos às fotografias.

Invertendo a ordem cronológica das fotos e, neste caso por extensão, dos acontecimentos, começo por aquela que vou dar o nome de “A tosse atroz”. Nela, o presidente Jair Bolsonaro é flagrado por Gabriela Biló durante um ato pelo fechamento do Congresso Nacional, no dia 19 de abril de 2020, em frente ao quartel general do Exército. Uma foto que em si teria tudo para ser descartada, não fosse o contexto histórico da qual participa.

O presidente aparece com as feições deformadas, curvado e recebendo um afago de um sujeito que parece ser seu segurança. Uma figura fragilizada e grotesca. Seus defensores poderiam acusar a fotógrafa de má-fé, pois o instante escolhido representa uma situação corriqueira, uma tosse inocente, cuja imagem de qualquer pessoa fotografada de modo semelhante seria depreciada. Colaboradora do jornal O Estado de São Paulo, Gabriela Biló estaria apenas depondo contra a imagem de um adversário.

A tosse atroz — Foto: Gabriela Biló

Que a fotografia virou uma arma discursiva para a imprensa, diariamente agredida pelo presidente, não resta dúvida. A oposição também se valeu da simbologia da foto que, ao se espalhar pelas redes sociais, ganhou diversas interpretações e releituras. Porém, é preciso não perder a riqueza da imagem tornando-a apenas um meme, cuja vida útil, sabemos, é efêmera. “A tosse atroz” lembra o público que a vê de que aquele corpo, provavelmente hospedeiro do novo coronavírus, colocou seu poder de influência a serviço de uma contranarrativa fascista. Jair Bolsonaro se dirigiu à praça pública para matar seus próprios apoiadores em nome de uma causa maior: a morte do Brasil. A fotografia desperta uma gama de associações e reações que permitirá, a quem quiser vê-la no futuro, um rico indício de quem era Bolsonaro, o que representava, o que pretendia fazer e quais foram as consequências da contaminação (viral e ideológica) que espalhou pelo país.

A outra fotografia também tem um teor dialético incrível, quase uma premonição. Postada no dia 16 de outubro de 2019 no Instagram de Gabriela Biló, “O fogo amigo” é uma imagem com significados menos abertos, pois coloca, a meu ver, uma composição alegórica. Há uma narrativa pré-interpretativa. Em um jogo de contrastes, vemos o riso debochado de uma turma que não se mistura com o novo amigo. Cabisbaixo, localizado mais à esquerda do quadro, o outsider serve de entretenimento. O gesto final é também o gesto original. A arminha com a mão, símbolo de uma campanha eleitoral abertamente fascista, elimina, na narrativa interna da fotografia, o que restava da narrativa insustentável do combate à corrupção no Brasil.

Sergio Moro sob fogo amigo — Foto: Gabriela Biló

Pouco mais de sete meses depois da publicação da fotografia, a alegoria se realizaria. Sergio Moro desiste de participar do governo que, por interesses próprios, mas não só, ajudou a eleger e a legitimar. Não era a dele. A turma queria fechar seu parque de diversões. O que seria dele sob o julgo dos arruaceiros? De qualquer maneira, “O fogo amigo” é um retrato semiótico de uma relação que ainda vai dar o que falar e compreender. Por isso, pode-se dizer que essas duas pérolas de Gabriela Biló são históricas. Elas dizem muito do agora e o mais importante, têm potência para continuar a dizer. Ao contrário das pinturas históricas, essas fotografias irão saltar no tempo a cada nova leitura.

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