Masculinah

Joanna Burigo
Visuais Virais
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5 min readApr 30, 2020
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Abaixo, trecho de um texto meu publicado em 18 de novembro de 2016 na CartaCapital intitulado A pós-verdade e a persistência da misoginia.

Compartilho porque já desde antes de lá eu vinha levantando a relevância urgência de entender gênero para entender o momento político que se formava, mas também porque, quatro anos depois, no #Brasil2020 do #Covid19, as formas como a mídia vem re/tratando o poder do trabalho político realizado por mulheres durante a pandemia muito deve nos interessar.

Seja institucionalmente em embates políticos ferozes, ou pela via das organizações independentes da sociedade civil, as ações mais eficientes, rápidas e positivas para o momento parecem estar vindo das mulheres. Em contrapartida, onde há gestão irresponsável e inconsequente, os decision makers tendem a ser homens, cis, brancos, e que se dizem heterossexuais.

Há quem insista que isso tudo é secundário, e respondo (frequentemente exasperada, confesso) que é coincidência demais para ser desconsiderada, lembrando imediatamente que tampouco é “coincidência”: é patriarcado, aprenda nosso léxico pois conhecemos o seu, mas divago.

Voltando ao raciocínio, não me escapa, é claro, que a janela da minha bolha tem vista pro feminismo; assim, é evidente que eu veria mesmo mais mulheres na linha de frente do combate ao Coronavírus. No entanto, é mais comum que eu saiba sobre as ações destas mulheres a partir de suas próprias redes, ou pela capilaridadgy feminista.

Não é inteiramente verdade que na mídia hegemônica elas nunca apareçam, mas, ainda, ali: é surra de homem cis branco re/tratado como sendo tendo poder. Para fazer qualquer coisa, inclusive merda. O que, vejam, acontece com muita frequência. E ora se não são sempre homens cis a interpelar os rumos da democracia, do estado de direito, do contrato social, de tudo o que é justo e belo, inclusive e sobretudo a vida propriamente dita? Reparem como é desnecessário disputar esta realidade.

Ao trecho do texto, então:

Masculinidade hegemônica, primeiro-damismo e supremacia branca

O conceito de masculinidade hegemônica é parte de uma teoria geral da ordem de gênero proposta por R.W. Connell, e pode ser definido como qualquer que seja a configuração atual de práticas de masculinidade que legitimem a posição dominante dos homens na sociedade e justifiquem a subordinação das mulheres (todas as mulheres) e outras formas marginalizadas de ser um homem.

É observável que seja figuras que encarnam a masculinidade hegemônica descrita por Connell quem estão, mais uma vez, firmemente sentado no troninho oficial do poder.

Independentemente de como chegamos aqui (embora isso seja importante), é notório que os corpos que habitam estas posições também emanam valores patriarcais.

O backlash de 2016 representa a volta dos que não foram.

Homens assim nunca saíram do poder, é evidente — a diferença é que, discursivamente e materialmente, as mulheres estão sendo forçosamente removidas de lá.

Para Connell, a feminilidade é sempre organizada como uma adaptação ao poder dos homens — assim, nenhuma feminilidade aceita jamais as vai permitir ocupar as mesmas posições de poder que eles.

O fenômeno da construção discursiva e simbólica de feminilidades aceitas e organizadas para serem submissas às masculinidades hegemônicas já foi descrito em mais de uma instância, e a mais notória delas é esmiuçada no clássico A Mística Feminina, de Betty Friedan.

No Brasil o furor causado pela matéria da revista Veja que qualificava a então primeira-dama interina Marcela Temer como bela, recatada e do lar fornece outra evidência deste acontecimento que se repete.

Após dois anos de muitas manchetes misóginas contra mulheres na política surge uma narrativa aceitável para mulheres como objetos decorativos de políticos.

O primeiro-damismo resgata a mística feminina e confirma a teoria de Connell: fomos colocadas de volta ao lugar discursivo de onde materialmente mal tínhamos saído.

Nos contexto das eleições norte-americanas — apesar da diferença de idade dos atores envolvidos ser praticamente a mesma — é a filha de Donald Trump, muito mais do que sua terceira esposa, quem encarna este papel, e de formas ainda mais coniventes com a noção da pós-verdade.

Ivanka se posicionou durante toda a campanha como uma mãe que trabalha, e assim cativou os votos de uma fatia da população que viu em seu discurso de “empoderamento feminino” um passe para depositar o voto no papai misógino.

Para a escritora Jessica Valenti isso é devido ao fato de que, neste momento, a compreensão mainstream do feminismo é menos sobre política e mais sobre a ideia nebulosa de “empoderamento”.

Talvez isso ajude a explicar as tantas mulheres brancas que optaram por votar em Trump — mais da metade delas votou em um machista manifesto e amplamente acusado de estupro, o que é revoltante, mas nem tão surpreendente.

É assim que funcionam os privilégios sobre os quais também tanto falamos. No que depender dos discursos de campanha, a administração Trump vai, definitivamente, privilegiar pessoas brancas…

Este resultado ilustra magnificamente a necessidade urgente pela aplicação, na prática, de outro conceito: o feminismo interseccional, termo cunhado pela professora norte-americana Kimberlé Crenshaw que indica que mulheres experimentam opressão em configurações variadas e com diferentes graus de intensidade.

Para Crenshaw, padrões culturais de opressão não apenas estão interligados, mas unidos e influenciados uns pelos outros — o que ela chama de “sistemas interseccionais da sociedade” — e exemplos deles incluem raça, gênero, classe, capacidades físicas/mentais e etnia.

As mulheres negras votaram esmagadoramente em Clinton, o que coloca em perspectiva uma fala batida: a de que mulheres brancas mal apresentam sororidade para com mulheres negras.

Aqueles que argumentavam que não havia muita diferença entre Trump e Clinton evidentemente não estavam considerando a autonomia corporal de todas as mulheres.

E agora?

Gênero é um fator crucial para a análise e os debates sobre política, e nos últimos tempos a misoginia direcionada às mulheres na política vem ficando cada vez mais explicitamente evidente.

Nos discursos que acompanharam as eleições norte-americanas e o processo de impeachment brasileiro há registros abundantes do quão apegados a valores patriarcais ainda estamos.

O machismo visível e mensurável, tanto na derrubada de Rousseff quanto na derrota de Clinton, foi amplamente denunciado, por elas e por muitas mulheres.

Será interessante prestar atenção em como a mídia retratará outras figuras femininas na política daqui por diante.

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