Sobre a apropriação das imagens para o gozo com a morte.

Diogo Dias
Visuais Virais
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4 min readApr 16, 2020

Um passeio do riso à perversão.

Paulo Kogos e o caixão simbólico, na Avenida Paulista: contra a esquerda, o isolamento social e o apelido de “meme ambulante” Acervo Pessoal/VEJA. Publicado em https://veja.abril.com.br/blog/veja-gente/doria-e-neonazista-diz-paulo-kogos-que-enterrou-na-rua-o-governador/

O mundo explodiu em imagens, como uma nuvem de gotículas depois da tosse. Pois bem, essa analogia é propícia, pois nos faz imaginar (atentem para os prefixos) a situação invisível. O que se pode ver de tudo o que acontece no mundo não passa de minúsculos fragmentos. Pequenos, breves, mas numerosos. Os estímulos são tantos que cabe ao nosso aparelho perceptivo selecionar o que nos serve de imediato e ao aparelho cognitivo dar sentido ao que chega à consciência.

Entendido isso, como lidamos com as imagens no aqui e agora, podemos imaginar essa mesma dinâmica com a adição do tempo e dos outros bilhões de corpos que não param de produzir imagens. Qual dessas imagens nos serviriam? Qual o sentido delas para nós como comunidade? Questões que são tão gigantescas quanto o próprio mundo. Portanto há ao menos duas escolhas. Tentar respondê-las ou não. Cada uma com consequências infinitas. Eu sou do time que tenta e por isso corre o risco de errar, mas que sabe que algo pode mudar se acertarmos ao menos um pouquinho.

Digo isso porque gostaria de juntar algumas imagens que penso nos servir para algo e tentarei dar algum sentido a elas segundo o olhar a partir do que vivemos agora. As primeiras tratam-se de uma montagem utilizada no meme mais difundido nas últimas semanas. O meme do caixão é um recorte que mostra um ritual funerário comum em alguns países africanos como desfecho cômico para uma situação cuja morte parece iminente. Como as próprias imagens do ritual ganês — retirado de uma reportagem da BBC — nos evidencia, as diferenças culturais nos causa um certo espanto. A cultura ocidental que normalizou uma certa forma de luto olha para os corpos dançantes sob o caixão vendo-os como repulsivos ou exóticos. Fora do contexto, tais imagens parecem absurdas e daí podemos deduzir parte do seu efeito cômico. Mas ao ver as filmagens da reportagem original, é perceptível como a descontextualização e manipulação tem um papel forte na construção de seu sucesso como meme. Os corpos exóticos (e aqui entra também a questão racial) são esvaziados de sua cultura e de sua voz ao serem usados em uma montagem com uma música eletrônica que nos dá a impressão de que aquele ritual funerário, que na verdade celebra a vida como renovação após a morte de um ente querido, é uma festa qualquer, uma zombaria com a morte coreografada sob medida para o riso do público ocidental. Mas há um corpo naquele caixão, há história naquela dança, há respeito no ritual.

Pode-se argumentar que rir da possível morte das pessoas que protagonizam os memes é algo como imitar a cultura dos dançarinos fúnebres de Gana. Mas isso seria ignorar totalmente os laços afetivos e temporais envolvidos em um ritual de luto. Não se vê as pessoas filmadas em risco de morte como dignas de consideração.

Como a consumação da morte não é mostrada e no seu lugar a saída cômica do ritual descontextualizado, toma-se aqueles corpos como meras imagens. Como se fossem um filme ou uma série de TV. Pois, assim como essas linguagens, o meme manipula o sentido através da montagem. Não há qualquer sentimento de luto, apenas o riso.

As outras imagens que gostaria de pensar são dois vídeos das recentes manifestações pró-morte em São Paulo. O rótulo pode parecer precipitado, mas as imagens dirão que o sentido que lhes dou cabe perfeitamente. O primeiro vídeo foi feito no dia 11/04/2020 na Avenida Paulista por um manifestante que comemorava o travamento da via em protesto contra as ações do governo do Estado para o combate do Covid-19. O isolamento social, defendido pela OMS e pela grande maioria dos infectologistas do mundo virou alvo do discurso neofascista brasileiro. No vídeo, uma alegria macabra brota das falas absurdas (que podem soar cômicas também), mas algo choca mais do que o que está em primeiro plano. Três ambulâncias bloqueadas por esta manifestação. Essas imagens demonstram o gozo com a morte, o orgulho de participar da elaboração do fim do Outro.

Um gozo que chega em seu clímax em um outro vídeo, gravado um dia depois, 12/04, no mesmo local. Nele vemos um grupo de brasileiros, não negros, aparentemente de classe média e vestidos com os símbolos recentes do neofascismo disfarçado de nacionalismo dançando com um caixão de papelão ao som do mesmo tema eletrônico que encontramos no meme. A imagem que representa a linha de chegada da total negação dos sentidos do real. Ali já não importa de onde vem a imagem original, seu significado, os corpos que nela são representados, os afetos, a história, a cultura, ou seja a vida em sua forma mais geral. É a adoração do espetáculo, da morte como um reality show em sentido literal. A manifestação da desconexão total com a ideia de humanidade. Tal como aquelas possíveis vítimas que o meme desumaniza, as possíveis vítimas da pandemia são meras projeções do outro que o neofascista detesta e quer ver extinto do seu campo de visão.

Diogo Dias é professor, escritor, mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo e observador atento das manifestações culturais.

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