Surrealpolitik, comunavairus

Joanna Burigo
Visuais Virais
Published in
4 min readApr 23, 2020
Link para a matéria de ontem, 22/04/20, n’O Globo

Todo mundo já sabe desse escalabro a essa altura, e se já não me chocam, surpreendem ou indignam os delírios destes fanfarrões é porque há muito que sentido, significado, linguagem, poder e homens cis brancos são objetos de minhas investigações. Papagaio (não é o que tendemos a fazer nas redes sociais?) esta matéria, no entanto, querendo o oposto de saturar a história que ela reporta. Quero é esmiuçá-la, pois a composição específica de fotografia e manchete que ilustra este texto ecoa meu repetitivíssimo grito de #surrealpolitik.

À esquerda, um ministro das relações exteriores terraplanista que é contra o que quer que seja o globalismo. À direita, o presidente da república, que pode ser descrito como muitas coisas (e genocida, neste momento, certamente convém) mas mentiroso calha sempre, visto que sua carreira política tem como leitmotiv negar a realidade fabricando versões dela. (E só acreditou que essa perversão de sentido não seria prática presidencial do Bolsonaro quem não a entende.) A manchete já seria chocante se fosse apenas sobre a interpretação bizarra do chanceler de que o vírus seria parte de um plano globalista de implementação do comunismo, mas ela ao mesmo tempo também revela que o mais alto escalão do governo brasileiro se presta a atacar a Organização Mundial de Saúde justamente durante a pandemia de Covid-19 de dois mil e vinte. E a matéria é sobre a publicação que Araújo fez em seu blog Metapolítica 17-Contra o Globalismo aos 22 de abril de 2020. O texto do blog começa assim:

Chegou o Comunavírus.

É o que mostra Slavoj Žižek, um dos principais teóricos marxistas da atualidade, em seu livreto “Virus”, recém-publicado na Itália.

as definições de ameaça comunista foram transmutadas de fantasma para arma biológica com sucesso

Então ainda nos esmiuçamentos desta cuestão, e para além da resenha que o pseudointelectual pensa poder fazer do intelectumala* e da viralização desta notícia estapafúrdia, me interessa apontar que o texto completo do ministro tem forma, cheiro e cor semelhantes aos de Olavo de Carvalho — o guru daddy dessa forma delirante de expressão que nos tomou de assalto — e olavistas com o mínimo de competência para simular as projeções que compõem a retórica de seu mestre, forjada no retalhamento de linguagens progressistas para fazer com seus elementos e palavras colagens que os ajustem à outra visão de mundo.

(Leia o texto aqui, na íntegra, e se puder me diga: a linguística e/ou ciência política já investigam o legado da retórica olavista no fascismo à brasileira?)

Em 2016 usei e expliquei o termo surrealpolitik assim: O termo realpolitik define políticas pragmáticas e não ideológicas, mas é praxe usá-lo de forma pejorativa para apontar políticas coercitivas e imorais. Venho usando o termo surrealpolitik para descrever o quadro nacional de forma puramente descritiva, no entanto; basta acompanhar as notícias para que o caráter flagrantemente surreal e patriarcal da nossa política se revele. Nas linguagens que emanam do governo Bolsonaro, a perversão de sentido segue sendo uma das principais engrenagens de sustentação da surrealpolitik. Não pode escapar de nossas análises o emprego constante e escandaloso da inversão de significado com fins explícitos de perversão de sentido para forjar discursos sobre a realidade. (E muito menos que o patriarcado faz isso sistematicamente…)

Hoje Luis Fernando Veríssimo, em coluna também n’O Globo, ofereceu uma leitura das ações do governo Bolsonaro como sendo surrealistas.

O mesmo governo que quase entregou a gerência da cultura brasileira ao filofascismo escolheu para ministro da Educação alguém sem nenhuma intimidade com a ortografia — um exemplo, entre muitos, do surrealismo que nos dominaria. A incrível guerra de egos que acabou com a troca do ministro da Saúde quando a situação mais precisava de união e continuidade ultrapassou o surrealismo e invadiu a área da demência. O presidente discursou numa manifestação que pedia a volta do AI-5 e, portanto, a queda do seu próprio governo, ou sua transformação numa paródia de governo com ele na frente, e discursou a favor do autogolpe. Ele declarou, para outra das aglomerações que o seguem por toda a parte, espalhando coronavírus: “A constituição sou eu”. Louis XIV tinha dito que o Estado era ele, Bolsonaro foi mais modesto. Um dos recursos do surrealismo é o da alteração da natureza das coisas. Relógios se derretendo como picolés, etc. No surrealismo brasileiro, não surpreende que documentos se transformem em gente e gente se transforme em antigos reis da França.

Mas não é comédia da vida pública. This shit is real, yo.

comunavairus! comunavairus!

*A saber, Žižek já respondeu a celeuma, ponderando que “o chanceler brasileiro não entendeu a questão do livro”.

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