O Imortal moribundo

Um figurante entre os borrões numa cena pausada

Asafe Gonçalves Pereira
Vitral
3 min readJan 30, 2020

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Volta e meia eu me pego meio perdido. Do nada entro num espiral de angústia tão cativante que quase me convence a ficar. Mas passa. Graças a Deus.

Lembro-me de quando li uma crônica de um amigo em que ele descreve a fantástica corrida de táxi que pegou em Buenos Aires. Ele contava que tinha chegado à cidade, precisado de um táxi e, “por obra do acaso”, descoberto no taxista um amigo (e daí se seguiram maravilhosas coincidências que pareciam não ter fim).

Não sei se foram os fatos ou a própria narração o que me encantou, mas enquanto lia me veio um súbito senso de vida; algo como se o próprio sentido da existência se mostrasse… Era a mesma sensação que eu tinha ao assistir um filme daqueles de conspiração numa sessão de sábado; a impressão de que enredos como aqueles são o que na verdade se espera da vida, quando, contra as aparências, tudo faz sentido e coopera com a jornada do herói… meio reducionista, certamente, “mas o instante é reduzido, o momento é um suspiro, a vida é curta”, pensava.

O dia-a-dia comum me parecia um roteiro monótono, repetitivo, batido até! “Quando surge alguma novidade, é a mesma da semana passada, ou do mês passado...” Já o exemplo do amigo e seu táxi em Buenos Aires, diferentemente, parecia muito bem escrito, coisa de roteirista profissional, em que tudo era novo e parecia fazer sentido, a coincidência brindava com um gostinho do que seria na verdade viver. Assim, vista a raridade dessas belas coincidências, não senti que vivesse diariamente. Apesar da continuidade da vida, senti que vivia algumas poucas vezes por ano, quando muito.

Acontece que a gente vive de monotonia e se vicia no extraordinário; o desespero é o óbvio produto. Esse relato moderadamente hollywoodiano me lembrou de uma sede antiga que voltava como se nunca tivesse sido saciada.

Às vezes, quando a gente se esquece da plenitude da Vida, o desespero da morte é o que resta.

Sei que naquele dia tive vontade de viver, de morrer também, desde que fizesse sentido. Quis ver o fim de tudo, quis ver o propósito, quis que o resumo da vida me engolisse, me atingisse de cheio e me fizesse entender meu papel. Mas o que vi foi a luz e a escuridão do princípio e do fim. Vi que não é a vida que é curta, mas o tempo; que pouco importa o quanto eu queira, o quanto eu faça, o quanto eu viva, ou mesmo que eu morra pouco importa. A parte que me cabe nesse enredo é tão pequena quanto pode ser, mas o drama do todo é tão grandioso que minha pequenez não ofende, alivia.

Finalmente liberto do descabido fardo de ser o protagonista da minha própria história, mergulhado nesse emaranhado, como um fio no tear dum tapeceiro, me vi infinito e infinitamente curto. Tudo e nada ao mesmo tempo, como um suspiro no instante em que suspiro. me descobri numa trama sem vaga para o papel de herói. A grandeza que eu buscava em curtas pinceladas é nada comparada à magnitude do quadro do qual me descobri parte. A sede estava novamente descansada na esperança da plena satisfação.

E no “despausar” dessa cena, no afastar-se do quadro, no virar do tapete, por mais que cada fio importe, cada pincelada conte e cada figurante atue; o todo é maior que cada parte. A glória é sempre do Autor.

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Asafe Gonçalves Pereira
Vitral
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Impostor em vários frontes. Usuário de drogas pesadas, a saber, café e transporte público. Viciado numa, dependente da outra.