O mundo está louco; O herói nem tanto

Daniel Menezes
Vitral
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7 min readNov 8, 2019

Prepare-se para tirar a poeira dos seus livros de contos de fadas,você irá precisar deles novamente.

As Sereias e Ulysses, por William Etty.

Depois de um dia cansativo, há várias formas de voltar pra casa. Segurando firme na barra de ferro do ônibus ou amarrado no mastro de um navio¹. Viagens diárias de coragem, longas jornadas em florestas encantadas de árvores ou de concreto, batalhas intermináveis contra dragões ou contra pilhas de papel. O olhar cansado do herói e um mundo louco ao seu redor. Esperança de vencer mais uma épica jornada até o sol se por. Há várias formas de enxergar a vida.

Por esses dias, enquanto aguardava o próximo combate cósmico, terminei a genial trilogia do diretor Shyalaman — Corpo Fechado (2000); Fragmentado (2016); Vidro (2019). Quero concentrar nesse último que, ao meu ver, é a luta da ciência para descredenciar os espetaculares poderes e peculiaridades dos três indivíduos. Seja pela lógica ou pelo método cientifico, um culto ao racionalismo. Nele, a Dra Staple é a encarnação da descrença: a luta para retirar o que torna tão extraordinário o ordinário.

A doutora em questão é o retrato do homem moderno: ao tentar desmistificar o herói, ele apenas o torna mais real. Ela e todo seu aparato médico exagerado beiram a irrealidade. A luta incessante por retirar cada elemento de maravilha no horizonte, o desespero por um racionalismo que reduz a vida ao que o próprio homem emprega sentido. Gostaria de falar mais coisas por aqui, mas, vou esperar que você assista aos filmes. Depois a gente conversa mais.

Enquanto isso, um outro ponto da trama é que o extraordinário dom dos personagens toca o mundo nas mais ordinárias figuras: uma mãe, um filho, uma companheira de lutas. São nessas pessoas que os heróis ou vilões encontram o destino dos seus poderes, recuperando a sobriedade de quem enxerga uma jornada a percorrer. E até uma morte para morrer.

Vidro, bem no fundo, é a luta da narrativa moderna contra os empoeirados contos de fadas — as velhas histórias contadas a crianças, e confinadas ao suposto período de ausência da racionalidade. E é bem possível que resida aqui um dos maiores crimes do nosso tempo: retirar o que é extraordinário do mundo e tentar colocar tudo na mente humana até que ela exploda por aí.

G. K. Chesterton, uma das maiores mentes do último século (e que não explodiu), amava os contos de fadas. E os defendia até a morte. O motivo:

“Você não vê”, disse-lhe, “que os contos de fadas são em sua essência bastante sólidos e diretos, mas que essa eterna ficção sobre a vida moderna é em sua natureza essencialmente incrível? Folclore quer dizer que a alma é sã, mas o universo é selvagem e cheio de maravilhas. Realismo quer dizer que o mundo é enfadonho e cheio de rotina, mas que a alma está doente e gritando. O problema do conto de fadas é — o que um homem saudável faria com um mundo fantástico? O problema do romance moderno é — o que um louco faria com um mundo monótono?

Nos contos de fadas o cosmo enlouquece, mas o herói não. Nas novelas modernas o herói está louco antes de o livro começar e sofre com a dura estabilidade e a cruel sanidade do cosmo. (…) assume-se que o jovem que parte em suas viagens terá em si todas as verdades substanciais: que será bravo, cheio de fé, razoável, que respeitará seus pais, manterá sua palavra, resgatará um tipo de pessoa e desafiará outro, (…). Então, após definir esse centro de sanidade, o autor se diverte imaginando o que aconteceria se o mundo todo enlouquecesse ao seu redor, se o sol se tornasse verde e a lua azul, se os cavalos tivessem seis pernas e os gigantes duas cabeças. Mas a sua literatura moderna toma a insanidade como o centro”. ² (grifo meu)

E ele não para por aí em seu manifesto a favor dos contos de fada:

“Os velhos contos de fada fazem do herói um ser humano normal; suas aventuras é que são surpreendentes. Elas o surpreendem porque ele é normal. (…) O conto de fadas discute o que o homem sensato fará num mundo de loucura. O romance realista sóbrio de hoje discute o que um completo lunático fará num mundo sem graça”. ³

Gilbert Keith Chesterton (1874–1936), escritor, poeta, filósofo, jornalista, e herói.

O ambiente dos contos de fadas é a mais bela lente para a vida: o encantamento que repousa nas substâncias comuns, nas sementes, nas pedras, nas casas, nos trabalhos, nas famílias. O encantamento que repousa no homem e na mulher comum. E esse homem é o centro de sanidade: ele sabe bem para onde está indo, e sua identidade recebida fornece o seu propósito. A partir daí, não importará se gigantes aparecerão por entre as nuvens ou sereias cantarão ao redor do velho navio: ele é definido, mortal, e sabe bem a sua missão, por mais ordinária e repetitiva que seja.

Esse tipo de narrativa inaugura um novo olhar para o comum e é um belo passo para preparar o coração humano a amar aquilo que é, de fato, real. Pode parecer agressivo ao romance moderno um homem não poder ser tudo. Pode parecer pequeno que ele seja mesmo firme e definido. Pode até soar monótono e sufocante, mas tudo isso é resultado dessa nossa mania de inverter os centros de sanidade: um mundo monótono e um homem louco.

E, assim, pouco se fala sobre a liberdade que há na definição: em não querer ser tudo e todos, por todo o tempo. Não me parece que esses heróis comuns estejam presos, afinal, foram libertos do esmagador peso da indefinição. Eles não mais precisam responder a todos os cantos da sereia oferecidos por aí, eles possuem uma casa para retornarem ao fim da jornada. E essa é a beleza que há na fidelidade a uma vida ordinária: lá se vai o herói, logo cedo, pisando esse chão firme, mas encantado.

A coragem de viver todos os dias a mesma missão não pode ser deixada de lado. É uma ode à resistência, à capacidade de permanecer o mesmo, ainda que tudo ao redor esteja mesmo de cabeça para baixo. A fidelidade de não enlouquecer junto com o mundo, tendo em mente que a vida não é sobre fazer o que é bom, mas sobre ser fiel e justo ao que é o verdadeiro bem.

E não há problema em se sentir cansado ao se ver nas mesmas lutas diárias. A tentadora lente da monotonia é resolvida do lado de fora: o mundo é mesmo extraordinário. Nos contos de fadas, não há separação entre o que é sobrenatural e o que é natural. É a invasão do céu na terra. Nada é excepcionalmente estranho, seja a normalidade ou o milagre mais improvável, pois a textura da vida é um fértil terreno de maravilhas. E quem, aqui, poderia me impedir de acreditar que todos os dias, o Sol não se cansa de levantar?

“A sua rotina pode provir não de uma falta de vitalidade, mas de uma torrente de vida. O que eu quero dizer pode ser observado, por exemplo, nas crianças, quando descobrem algum jogo ou brincadeira de que gostam muito. Uma criança balança ritmicamente as pernas devido a um excesso, e não a uma ausência de vida. As crianças têm uma vitalidade abundante, são impetuosas e livres de espírito, e portanto querem as coisas repetidas e inalteradas. Elas sempre dizem “Faz de novo”; e o adulto faz de novo até ficar quase morto. Os adultos não são suficientemente fortes para exultarem na monotonia.

Mas talvez Deus seja suficientemente forte para exultar na monotonia. É possível que Deus diga ao sol todas as manhãs: “Faz de novo”, e diga à lua todas as noites: “Faz de novo”. Pode ser que não seja uma necessidade automática que faz todas as margaridas iguais; pode ser que Deus faça cada margarida separadamente, mas não se canse de criar cada uma delas em particular. Pode ser que Ele tenha um eterno apetite de infância; pois nós pecamos e envelhecemos, e nosso Pai é mais jovem do que nós.”³

E nessa luta para o coração não endurecer, é tempo de lembrar que há excesso de vida na monotonia, e não falta. Há excesso de coragem em permanecer, e não falta. Morremos todas as vezes em que desistimos tão facilmente de uma missão simples e ordinária. Perdemos nossa semelhança com nosso Pai. Perdemos o brilho do caminho extraordinariamente ordinário do herói. No fim das contas, o que faz Ulisses retornar não é a sua carreira, suas ambições ou seu conforto, mas seu grande e fiel amor. E por ser livre para viver assim, ele é amarrado em um mastro, mas poderia também ser visto por aí preso numa cruz.

1 — Referência ao rei e guerreiro Ulisses (em grego: Odisseu), personagem encontrado na Odisseia, um dos Poemas Homéricos. Caso não tenha tempo para ler todas as aventuras dele, fica a indicação da música (com atenção para cada detalhe da letra) “Ulysses”, de Josh Garrels.

2 — Trecho do conto escrito por G. K. Chesterton: “A avó do dragão”, encontrado na obra Tremendas trivialidades — Editora Ecclesiae.

3 — Trechos retirados da obra Ortodoxia, de G. K. Chesterton — Editora Mundo Cristão.

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Daniel Menezes
Vitral
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Cristão em uma longa aventura. Inclusive com as palavras.