O que o diabo me ensinou sobre política

Breno Nunes
Vitral
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8 min readMay 15, 2020
Pieter Bruegel the Elder — The Tower of Babel (Vienna) — Google Art Project

Há um famoso ditado cristão que diz: “Toda verdade é verdade de Deus, mesmo que dita pela boca do diabo”.

Normalmente, a frase é evocada quando alguma verdade evidente é proferida por meios não muito convencionais — um cientista secular, um filósofo pagão ou até um ateu militante. Mas, na maioria das vezes, não é realmente da boca do diabo que as verdades são ouvidas.

Entretanto, sobre o assunto que quero escrever hoje, isso realmente aconteceu. Mais do que isso. O acontecido foi registrado, formatado, editado e por fim, publicado em meados da década de 40 com o ultrajante título ‘Cartas de um diabo a seu aprendiz’.[1]

Na correspondência é revelado o relacionamento entre o demônio Fitafuso e seu sobrinho Vermebile, um iniciante na arte das trevas. Como um demônio experiente e bem-sucedido, Fitafuso deseja aconselhar seu sobrinho sobre a milenar arte de levar os humanos para o inferno, mas, principalmente, ajudá-lo com o caso de um paciente recém-convertido ao cristianismo e que presenciava uma das maiores guerras de nossa história.

Escrevendo sobre como usar a condição política da Inglaterra em favor de propósitos diabólicos, Fitafuso diz:

Não me esqueci da promessa que lhe fiz: refletir se devemos transformar nosso paciente num patriota radical ou num ardoroso pacifista. Todos os extremos, com exceção da devoção extrema ao Inimigo, devem ser encorajados […] O que quer que ele defenda, sua principal tarefa continua a mesma, Vermebile. Deixe-o começar por considerar o patriotismo ou o pacifismo como parte de sua religião. Então deixe-o, sob a influência do espírito partidário, considerar o patriotismo ou o pacifismo como a parte mais importante. Depois, cuide para que ele fique naquele estágio em que a religião torna-se apenas uma parte da “causa” na qual o Cristianismo é valorizado basicamente por causa da excelente argumentação que fornece em favor dos esforços britânicos na guerra ou do pacifismo. Você deverá precaver-se quanto àquela atitude de que os assuntos temporais são basicamente considerados matéria-prima para a obediência. Uma vez que você tenha feito do mundo um fim em si mesmo, e da fé apenas um meio para chegar até ele, você estará a poucos passos de ter controle sobre o seu paciente, e fará pouca diferença a meta terrena que ele busca. Ele será nosso, contanto que encontros, panfletos, politicagens, movimentos, causas e cruzadas sejam mais importantes para ele do que preces, sacramentos e caridade — e quanto mais “religiosos” (nesses termos) eles forem, mais controle teremos sobre eles. Você devia ver só quantas jaulas cheias deles existem aqui embaixo.[2]

Eu acredito que desde a Segunda Guerra Mundial até os dias de hoje, as estratégias satânicas relacionadas a política não mudaram. Talvez algumas pequenas alterações. Ao invés de pacifismo e patriotismo, os termos atuais poderiam ser direita e esquerda ou progressista e reacionário (embora eu desconfie que o diabo, sendo tão astuto e perspicaz, usaria categorias políticas mais refinadas). Mas o mecanismo central ainda me parece o mesmo.

No centro da tentação está um processo sutil, mas poderoso, de confundir e subverter a relação entre duas categorias teológicas fundamentais: a natureza e a graça.[3] No processo de sedução do “paciente”, a esfera sobrenatural da graça perde toda sua relevância temporal genuína e suas qualidades positivas constituintes são esvaziadas de qualquer significado transcendente, tornando-se assim apenas um meio de legitimação das aspirações políticas escolhidas. O cristianismo se torna ‘imanentizado’ e seus horizontes escatológicos achatados às conquistas políticas temporais. Ao mesmo tempo, a esfera natural, passa a operar de maneira totalmente independente e autônoma, violando seus contornos criacionais divinamente estabelecidos.[4]

Como Fitafuso deixa claro, e como tem provado a ainda recente história da política brasileira, os objetivos políticos específicos são de pouco importância nesse processo, contanto que eles sejam transformados em fins em si mesmos. Segundo a tradição cristã, no entanto, apenas Deus deve ser valorizado e desfrutado como um fim em si mesmo[5]. Nenhum aspecto da criação existe independente do domínio divino e nenhuma esfera da realidade possui significância a parte da graça divina. Os diversos aspectos criacionais só possuem qualidade ontológico positiva, por assim dizer, na medida em que participam da vida eterna do Deus Criador. Como tal, só podem ser valorizados de maneira relativa e como meios de expressão da presença e caráter divinos (Colossenses 1.15–20; Romanos 11.36). Portanto, atribuir às causas políticas, sejam elas quaisquer, um valor último, é usurpar um atributo exclusivamente divino e constitui o estágio final do que Dooyeweerd chamou de ‘absolutização’, ou em outras palavras, idolatria.[6]

É claro que um demônio experiente como Fitafuso estava ciente desse “mecanismo idolátrico” subjacente, mas isso nem sempre fica evidente à primeira vista. Muitos jovens cristãos ao entrarem na universidade e se associarem a movimentos estudantis ou ideologias políticas passam a acreditar que as novas informações oriundas do ambiente universitário tornam a fé cristã simplesmente insustentável. Os poderes persuasivos das ideologias seculares teriam supostamente revelado os mecanismos de poder e opressão por trás das estruturas religiosas, sendo as únicas alternativas plausíveis, o abandono definitivo da fé ou sua reconfiguração radical. Mas não é isso que realmente acontece. A causa última da apostasia não está localizada na qualidade das informações, mas no objeto de devoção pessoal. Parafraseando Thaddeus Willians: “não é que as ideologias seculares tenham contestado Deus, antes, as ideologias seculares se tornaram ‘deuses’”. [7]

Ironicamente, não é apenas a fé que é perdida, mas os próprios objetivos temporais entram em colapso ao serem tratados como um fim em si mesmo. Como escreveu Alexander Schmemann:

Quando vemos o mundo como um fim si mesmo, tudo se torna um valor em si mesmo, e consequentemente, perde todo seu valor, pois somente em Deus é encontrado o significado (valor) de tudo, e o mundo é significativo somente quando é o ‘sacramento’ da presença de Deus. Coisas tratadas meramente como fins em si mesmos são destruídas por si próprias, pois somente em Deus tem-se qualquer vida. O mundo da natureza, tirado de sua fonte de vida, é um mundo perecendo.[8]

Em resumo: a natureza divorciada de sua fonte divina absoluta perde a si mesma e é esmagada sob o peso das expectativas idólatras humanas.

Até que o coração humano chegue a tal ponto, no entanto, é necessário ofuscar os sinais da graça o máximo possível de seu horizonte de experiência. É por isso que o objetivo final de Fitafuso é elevar as preocupações políticas acima das “preces, sacramentos e caridade”, afastando, assim, a alma cristã daquilo que são os sinais visíveis do Reino de Deus.[9]

O culto cristão é o ambiente sobrenatural em que a história do evangelho é recontada semana após semana. Por meio da pregação das Escrituras, dos cânticos e dos sacramentos, a liturgia cristã situa nossos corações na verdadeira história do universo, nos relembrando de que o Reino de Deus já foi inaugurado e que, por fim, virá sobre toda a terra. Hans Boersma expressa isso de maneira poderosa:

Nos sacramentos da igreja — batismo e eucaristia — testemunhamos a restauração sobrenatural da natureza ao seu propósito original. O propósito de toda matéria, como já mencionei, é nos conduzir à presença celestial de Deus, trazer comunhão com Deus, participação na vida divina. Portanto, os sacramentos eclesiásticos são simplesmente o começo da restauração cósmica. Todo o cosmos destina-se a servir como um sacramento; um dom material de Deus no qual e através do qual adentramos na alegria de Sua presença celestial.[10]

É no culto cristão que somos relembrados de que os reis da terra são passageiros, de que seus projetos políticos são temporais e que seus poderes só permanecem enquanto o Filho lhes concede. Somos rememorados de que nossa cidadania é celeste e de que há apenas um Governante a quem prestamos louvor e devoção absolutos. Esta cidadania [celestial] dos cristãos é incompatível com tentativas de transformar fins terrenos em preocupações últimas”.[11] Em contrapartida, longe da comunhão eclesiástica com sua significância litúrgica, se torna fácil esquecer nossa pátria celestial, e portanto, que nossos objetivos últimos não se encontram nessa terra.

Toda realidade será cheia da glória divina e somente através das lentes redentivas da história cristã é que o mundo “natural” pode atingir seu verdadeiro fim. A partir disso, nossos engajamentos culturais e políticos podem ser reconfigurados como uma modesta e imperfeita antecipação sacramental do reino vindouro, sua shalom prometida e seus frutos de justiça e bondade já presentes.

[1] O responsável por agrupar e selecionar as cartas foi o famoso C. S. Lewis. Graças a seus esforços pioneiros, a coletânea de cartas pode ser adquirida em qualquer boa livraria evangélica.

[2] LEWIS, C. S. Cartas de um diabo a seu aprendiz. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 35.

[3] O diálogo de Natureza e Graça representa um dos temas fundamentais da teologia cristã. Para uma introdução acessível, cf. as aulas sobre Vida e Pensamento de Francis Schaeffer, ministradas por Guilherme de Carvalho. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fw_vlNo5Hb0; cf. DE LUBAC, Henri. A brief catechesis on nature and grace. Ignatius Press, San Francisco, 1984.

[4] Cf. DOOYEWEERD, Herman. Estado e Soberania: ensaios sobre cristianismo e política. São Paulo: Vida Nova, 2014. Para uma aplicação da articulação reformada de natureza e graça no contexto da teologia política brasileira, cf. CARVALHO, Guilherme V. R. O dualismo de Natureza/Graça e a influência do humanismo secular no pensamento social cristão. Em: LEITE, Cláudio A. C., CARVALHO, Guilherme V. R., CUNHA, Maurício J. S., Cosmovisão cristã e transformação: espiritualidade, razão e ordem social. Viçosa: Ultimato, 2006, p. 123.

[5] Aqui estou me referindo especialmente ao que Hans Boersma chama de “A Grande Tradição”, sendo Agostinho seu principal representante, como também aos seus herdeiros reformados como João Calvino e Jonathan Edwards. Cf., BOERSMA, Hans. Heavenly participation: the weaving of a sacramental tapestry (Grand Rapids: Eerdmans, 2011).

[6] O termo idolatria política é uma categoria conceitual complexa e frutífera. Entretanto, meu objetivo nesse texto não é estabelecer uma definição precisa do termo nem acusar qualquer expressão política em particular. Meu objetivo é simplesmente apontar para o impacto de tal valorização da criação na vida espiritual individual, e uso o termo idolatria em seu sentido bíblico mais básico. Além disso, recentemente o conceito foi extremamente banalizado nas redes sociais e se tornou meramente um “xingamento teológico”. Não pretendo me associar a tal movimento e concordo com a recomendação de Guilherme de Carvalho a favor de uma moratória no emprego da ideia de idolatria política. Cf., https://guilhermedecarvalho.com.br/2019/05/14/idolatra-e-voce-migalhas-sobre-o-xingamento-teologico/.

[7] Não estou sugerindo com isso que toda crise espiritual de jovens universitários possa ser explicada de maneira simplista, nem inviabilizando o diálogo sobre questões honestas que possam ser levantadas nesse contexto. Meu ponto é simplesmente demonstrar que a questão é espiritualmente mais complexa e envolve compromissos pré-teóricos.

[8] SCHMEMANN, Alexander. For the life of the world: sacraments and orthodoxy. St Vladimir’s Seminary Press, 2018, tradução nossa.

[9] O papel fundamental da eclesiologia no desenvolvimento de uma teologia pública saudável tem sido amplamente reconhecido por diversos autores e movimentos teológicos. Entre eles, podemos citar: James K. A. Smith, Peter Leithart, o movimento da Ortodoxia Radical como um todo e entre outros.

[10] BOERSMA, Hans. Heavenly participation: the weaving of a sacramental tapestry (Grand Rapids: Eerdmans, 2011, tradução nossa), p. 9.

[11] Ibidem, tradução nossa.

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