Pare de buscar experiências com Deus

Maturidade,criação e chamado.

Bruno Emídio
Vitral
10 min readMay 29, 2020

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A Glória de Deus no Monte Sinai

Quem nunca ouviu aquele discurso sobre a importância de viver uma vida de santidade para ter cada vez mais proximidade e consequentemente “experiências” intensas e sobrenaturais com Deus. Ter um direcionamento maior e ter a certeza de estar no “centro da Vontade”. Isso parece muito piedoso, e no fim das contas, tem seu fundo de verdade e é desejável, mas, não creio que seja o fim da vida cristã, e muito menos o que acontece com a maioria dos crentes, que muitas vezes se enxergam “frios”, angustiados, inseguros e com uma realidade muito pequena.

Não me entenda mal, apenas gostaria de discorrer um pouco sobre uma pratica especifica que ocorre em muitas igrejas — inclusive a qual vim a conhecer Jesus — e que no fim das contas, pode acabar gerando frustração e apatia.

É comum esse cenário se dar no início da caminha cristã. Aquele período em que:

Ele está preparado para intervir um pouquinho, no início. Irá instiga-los com pequenos sinais de sua presença que, embora minguados, parecem grandes para eles, repletas de doçura emocional e representativas de um resistência fácil à tentação — C.S Lewis¹

Alguns chamam de “primeiro amor”, mas esse estado não é e nem dever ser eterno. Muitos tentam desesperadamente voltar a ele e acabam se frustrando por não terem mais “experiências” como outrora. Em cartas de um diabo a seu aprendiz C.S. Lewis dá voz ao diabo Maldanado que nos auxilia:

Ele nunca permitirá que esse estado de coisas dure para sempre. Mais cedo ou mais tarde, irá retirar, se não de fato, pelo menos de sua experiência consciente, todo apoio e incentivo. Deixará a criatura andar com as próprias pernas — a fim de executar a partir da própria vontade aqueles deveres que já perderam o atrativo. É durante esses períodos de baixa, muito mais que nos períodos de pico, que ela amadurecerá e se tornará o tipo de criatura que ele deseja que ela seja. Desse modo, as orações feitas no período no estado de aridez são aquelas que o agradam mais. […] Ele quer que eles aprendam a andar sozinhos e deve, por isso, retirar sua mão. E o se o que restar for apenas vontade de andar, ele ficará satisfeito até mesmo com seus tropeços.¹

O demônio mor continua ensinando o aprendiz:

Não o deixe suspeitar da Lei da ondulação. Faça-o presumir que a euforia inicial de sua era para ter durado, que deveria ter se perpetuado para sempre, e que a aridez que ele está sentindo agora é uma condição permanente. Uma vez que tenha fixado bem essa concepção equivocada na cabeça dele, você poderá proceder de várias formas.¹

Ele alerta para algumas atitudes corriqueiras das pessoas diante desse aparente “sumiço” de Deus. O personagem, então, diz existir “tipos de pessoas” e atitudes diferentes decorrentes de cada uma. Um desses tipos de pessoa é aquela que pode ser tentada a cair no desespero. O aprendiz, no livro, deveria então, “apenas mantê-lo longe do caminho de cristãos experientes, […] para direcionar a sua atenção para às passagens apropriadas das Escrituras e, depois, fazê-lo trabalhar no projeto desesperado de recuperar os seus velhos sentimentos por pura força de vontade”.¹

O outro tipo, mais esperançoso, se depara tanto com sua frieza que gradualmente contenta-se com ela e “ em uma semana ou duas, você o deixará em dúvida se os primeiros dias do seu cristianismo não foram talvez um pouco exagerados. [..] uma religião moderada é tão interessante para nós quanto religião nenhuma — e mais divertida”.¹

Há uma certa fixação por esses primeiros momentos, particularmente passei por isso, mas creio que há uma recomendação muito pertinente de Francis Schaeffer sobre:

O novo nascimento é a coisa mais importante de nossa vida espiritual, porque só somos cristãos depois que passamos por isso. Por outro lado, no entanto, depois que a pessoa se tornou cristã, esse ponto precisa ser minimizado, no sentido de não termos sempre a mente voltada para nosso novo nascimento. O importante, depois de ser nascido espiritualmente, é viver. Há o novo nascimento, e então há a vida cristã para ser vivida. Essa é a vida cristã para ser vivida. Essa é a área da santificação, desde o tempo do novo nascimento, por toda a vida presente, até Jesus voltar ou até nossa morte. ²

Se tenho as “experiências” (sobrenaturais) como tudo que resumirá minha vida e caminhada cristã, há a tendência de tornar todas as “coisas do mundo” menores e menos importantes. O resultado só pode ser desespero, apatia espiritual e o encolhimento da realidade. “Como alguém poderia permanecer interessado em uma religião que parece não ter relação com nove décimos de sua vida?”, diz a escritora Dorothy Sayers.

Francis Schaeffer também discorre sobre o assunto ao afirmar: “Aos poucos, no entanto, constatei um problema — o problema da realidade. […] gradualmente crescia em mim que minha realidade era menor do que deveria ser nos primeiros tempos antes de me tornar cristão”.²

Corriqueiramente nos deparamos com os grandes homens da fé — principalmente do antigo testamento — com uma relação, aparentemente, muito “próxima” com o Criador. Testando a figura divina, participando de epifanias, ouvindo ao Senhor de forma extraordinária. Porém, não podemos esquecer que todas estas histórias integram a grande narrativa da revelação divina ao longo da história até seu ápice com a encarnação, morte e ressurreição de Cristo.

Não quero negar o poder de Deus e sua capacidade de nos propiciar experiências extraordinárias e grandiosas a qualquer tempo ou ocasião, mas creio que essa não parece ser a regra. Até porque essa busca indiscriminada, que parece ter mais a ver com nosso contexto hipermoderno do que piedade, pode levar a um desprezo da vida comum e esquecimento da apreciação da beleza e grandeza da realidade, que o próprio Deus criou e nos designou a cuidar, cultivar e louvá-lo nela.

Podemos nos perguntar, por que Deus fez este mundo como ele é, e com a realidade “comum” que experimentamos?

Por que Deus fez um mundo cheio de bons amigos, bacon frito, riso de crianças, pores do sol […] futebol universitário, amor conjugal e o calor de meias de lã? […] sua alegria em família. Sua alegria com os amigos. Sua alegria nas panquecas e ovos, no bife com batatas, nas batatas chips com salsa. Sua alegria nas viagens de camping, nos exercícios físicos e em sua playlist no Ipod. Sua alegria na Bíblia, nos cultos de adoração e nos momentos tranquilos que antecedem o sono. Sua alegria no trabalho, nos hobbies e na rotina diária. — Joe Rigney³

A criação se deu num ato de transbordamento do amor trinitário. Um mundo para sua Glória, um presente ao Filho eterno, mas por que esse mundo é cheio de prazeres? Prazeres físicos, sensíveis, emocionais e relacionais? Prazeres que constituem parte da realidade cotidiana. Maldanado prossegue:

Quando lidamos com o prazer em sua forma saudável, normal e satisfatória, estamos, por assim dizer, no campo do Inimigo. Eu sei que ganhamos muitas almas por meio do prazer. Ainda assim, trata-se de uma invenção dele, não nossa. Ele criou os prazeres. [Não] nos permitem produzir sequer um deles. Tudo o que podemos fazer é encorajar os humanos a desfrutarem dos prazeres que nosso Inimigo produziu, mas o utilizando de algum modo ou em níveis proibidos por ele. Logo, sempre tentamos trabalhar à parte da condição natural de qualquer prazer, ou seja, naquilo que é menos natural, com uma menor porção do perfume do seu Criador e menos prazeroso.¹

Deus, infinito e eterno, criou o mundo, que o reflete e o revela. (Sl 19, Rm1). Como, então, devemos lidar com as coisas da terra? Rejeitar, usar, abraçar, esquecer, ter apreço ou desconfiança? Ou ainda, desfrutar delas com pontadas de culpa? Deus só se importa com o que é “espiritual”?

Para ser honesto, eu nem mesmo sei o que isso significa, mas essas coisas espirituais ilusórias têm ajudado os cristãos a evitar a verdadeira santidade por séculos. […] Deus só se importa com coisas espirituais? Seu reino é um reino espiritual? Você está brincando comigo? Deus só se importa com como nos expressamos diante dele? Essa é uma parte, claro, mas estou bastante certo de que ele criou animais físicos e um homem físico e lhe deu um trabalho físico. Tenho certeza de que ele criou uma árvore física com um fruto físico e ordenou ao homem físico não comê-lo fisicamente ou seu corpo físico morreria. Ele comeu o fruto físico e agora nós vamos fisicamente para o solo físico, apodrecemos e nos tornamos plantas físicas e comida de vermes físicos. E por causa desse problema incrivelmente físico, ele deixou as coisas ainda mais claras quando seu Filho assumiu a carne física para viver a vida física que o conduziria à cruz física onde ele absorveu em seu corpo físico nossa maldição, foi torturado e me comprou, comprou você e todo este mundo físico com seu sangue físico. Se ele quisesse um reino espiritual, ele poderia ter se poupado de um monte de problemas (para não dizer que deixaria os filósofos gregos e os gnósticos medievais muito mais felizes) apenas ao pular o Natal e a crucificação. — N. D. Wilson⁴

Nosso chamado é para refletir a Imagem de Deus no mundo, somos criados assim (Gn 1:27). Fomos comissionados a “governar” e cuidar da criação. Cultivá-la e trazer à tona todo seu potencial por meio da cultura — num sentido amplo (Gn 1:28–30).

A criação é deveras muito boa, mas isso não significa que que ela seja completa. A criação não surgiu já com escolas, museus de arte, Iphones e automóveis. Deus nos colocou na criação para desvendar e desenvolver todo potencial latente que Deus inseriu na criação, e ele nos comissiona a fazer precisamente isso. — James K.A. Smith⁵

Isso não quer dizer que toda produção cultural seja boa. Depois da Queda e com a expansão do pecado, atividades que seriam para glória de Deus são usadas como sinal de rebelião e difamação do nome de Deus. Porém, pretendo abordar esta outra face do estado atual da criação, a idolatria, pecado e os perigos de nossa relação com o mundo, em outro texto. Mas já adianto com esta colocação Francis Schaeffer “quando é que o desejo apropriado se torna pecado? Acho que podemos responder de maneira simples: o desejo se torna pecado quando deixa de incluir o amor para com Deus e os homens”. ²

Devemos olhar para criação com os olhos dEle. Uma criação muito boa! Uma forma de conhecê-lo e desfrutar dEle de maneira mais plena. Recebendo com alegria e desfrutando de todas as suas dádivas. Assim o glorificamos em todas as coisas (1 Cor 10:31).

O deleite em Eva (Gn 2) é como se mostra o amor pleno e supremo quando encontra Eva. Desfrute agradecido dos tacos de peixe é como se mostra o amor supremo a Deus quando come tacos de peixe. Prazer intenso no [futebol]⁶ da igreja é como se mostra o amor supremo a Deus quando joga [futebol]⁶ Deleite nas pessoas e amor às pessoas é como se mostra o amor pleno e supremo a Deus quando encontra pessoas. — Joe Rigney³

Há um endosso disso por parte de C.S Lewis em Cristianismo puro e simples⁷:

“Nós […] não seremos capazes de adorar a Deus nas ocasiões mais sublimes se não tivermos adquirido o hábito de adorá-lo nas mais simples. Na melhor das hipóteses, nossa fé e razão nos dirão que ele é adorável, mas não o teremos achado assim, não teremos ‘provado e visto’.

Um convite à vida que está diante de nós, dado por Deus.

Sentir, ver, provar e tocar a música do mundo, vislumbrar o transcendente no simples e o simples no transcendente, tremer de assombro diante de uma criança que estuda poeira pisoteada, enquanto gira com lentidão no ar acima dela, cabeça e ombros por dentro de um balanço de pneu […]Observar por uma hora a superfície escura e imóvel de um lago, maravilhar-se com a invenção da água e a minha necessidade de engoli-la, senti-la e percorrê-la.[…]Entregue sua vida. Seus batimentos cardíacos não podem ser poupados. Sua reserva de respiração está escoando. Você tem mãos, caleje-as enquanto pode. Você tem ossos, desgaste-os — eles não podem carregar nada no túmulo. Você tem pulmões, permita que eles extravasem de risos. […] eu tenho em torno de 250 mil horas remanescentes para mim nas quais eu poderia sorrir ou franzir a testa, alegrando-me em minha vida, nesta corrida, nesta história ou lamentando e reclamando dos meus problemas. Posso dar meus dedos, minhas costas, minha mente, minhas palavras, meu fôlego, para minha esposa, meus filhos e meus próximos ou eu posso correr atrás do vapor e da vaidade, arrastar meus pés, com medo de morrer e, portanto, com medo de viver. E, como Adão, eu ainda morrerei no final. Viver é o mesmo que morrer. Viver bem é a mesma coisa que morrer pelos outros. […] Desapareceremos. Não podemos segurar e guardar. Não podemos contrabandear coisas conosco ao passar pela morte. […]Procure fotos. Observe as caixas repletas desvalorizadas de vapor. Saia rápido. Mas isso não deveria inspirar melancolia; deveria apenas tingir o doce como amargo. Não fique ressentido com os momentos por eles não poderem ser congelados. Prove-os. Saboreie-os. Agradeça pelo pão diário. O maná não fica para o dia seguinte. Mas virá pela manhã. — Nathan D. Wilson⁴

Portanto, não diminua a realidade criada. Aprenda a dar graças por todas as coisas, vivendo momento a momento diante de Deus. Seja jogando futebol, lendo a bíblia, saboreando sua comida favorita, orando, trabalhando no caixa de supermercado, jejuando, ouvindo uma boa canção do Metallica, João Gilberto, ou um louvor. Afinal, o Deus unigênito recebeu um corpo como nós. Deus não nos removerá de sua criação no final da história (Ap 21;22), Ele descerá para habitar conosco em uma nova criação. Vivamos como habitantes desta cidade desde já! Em tudo daí graças. Que sejamos maduros e vivamos a liberdade cristã de forma responsável e intensa, a vida que Jesus nos deu para seu louvor, hoje e sempre.

1 — Cartas de um diabo a seu aprendiz / C.S Lewis; traduzido por Gabriele Greggersen. 1ª ed. — Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017. Cartas VIII & IX. p.51–60

2 — Schaeffer, Francis A. Verdadeira Espiritualidade / Francis Schaeffer; traduzido por Hope Gordon Silva. 2aed._ São Paulo: Cultura Cristã, 2008 240p

3 — As coisas da terra: estimar a Deus ao desfrutar de suas dádivas / Joe Rigney, tradução William Campos da Cruz — Brasília, DF: Editora Monergismo, 2017.

4 — Wilson, Nathan D. Morrer de tanto viver / Nathan D. Wilson, tradução Josaías Cardoso Ribeiro Júnior — Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018 184p

5 — Smith, James K.A . Você é aquilo que ama: o poder espiritual do hábito / James K.A. Smith ; tradução de James Reis. — São Paulo: Vida Nova, 2017. p 225-228

6 — Notas do Autor

7 — Lewis, C.S. Cristianismo Puro e Simples/ C.S Lewis; traduzido por Gabriele Greggerson. — Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017

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Bruno Emídio
Vitral
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Feito filho de Deus pela obra de Jesus, Mutuense,quase psicólogo e amante de metalcore e tatuagens.