Um chamado ao comum

Quando o sagrado invade a vida

Bruno Santana
Vitral
5 min readJun 19, 2020

--

Existe no meio dos cristãos do nosso tempo uma ideia muito popular sobre a busca de um “chamado”. Uma ideia que não somente se popularizou há algumas décadas, mas orientou e orienta a visão de muitos em suas decisões, principalmente jovens em fase de escolha de formação e profissão.

Se você é evangélico há alguns anos, provavelmente já ouviu discursos sobre “estar no centro da vontade de Deus e encontrar seu chamado”. Esses discursos muitas vezes são acompanhados de fortes exortações, gerando um grande temor. O ouvinte se pergunta; “Mas e se eu não estiver no centro da vontade de Deus?” ” E se a profissão que eu exerço hoje não for o que eu fui chamado para fazer?”. Afinal, essas pregações geralmente não falavam sobre ser chamado para fazer coisas comuns como: ser engenheiro, pedreiro, psicólogo, ou atendente de telemarketing. Isso, muitas vezes gerava angústia em muitos que pensavam só poder servir a Deus fazendo coisas tão “espirituais” quanto ser pastor, cantor ou missionário em outro país.

Essa visão contém ideias equivocadas não só do trabalho, mas da vida como um todo e como seria muito querer desconstruir tantos pontos, vamos nos ater apenas à relação do cristão com sua vida profissional.

Para isso podemos pensar na nossa ideia de trabalho e nos perguntarmos a razão dele,ou melhor, por que eu deveria trabalhar?

Gosto da ideia de Dorothy Sayers tem sobre o trabalho “não [como]uma inconveniência necessária para ganhar dinheiro, mas um estilo de vida em que a natureza do homem encontra seu exercício e prazer adequados, dessa forma se realizando para a glória de Deus.”

Essa definição vivida em sua plenitude resolveria uma grande parte dos dilemas do homem moderno. Procurar um lugar onde a minha natureza e meu prazer, para a glória de Deus, são levados como um estilo de vida deveria ser a nossa busca por trabalho. Perceba que isso desconstrói nosso pensamento sobre chamados extraordinários, visões e revelações dadas de forma sobrenatural. Mesmo que não queira, de forma alguma, negar a existência e importância dessas realidades e formas da ação de Deus. No entanto, me parece, que a forma como Deus quer que o homem escolha seus caminhos tem muito mais a ver com princípios e valores do que com mensagens angelicais. Afinal, você já se perguntou por que temos realidades tão cheias de manifestações supostamente espirituais e ao mesmo tempo tão cheias de corrupção e maldade? É porque no fim das contas o que vai guiar o coração humano em suas escolhas é a forma como ele percebe a presença de Deus no ordinário do seu dia e na realidade a sua volta. Entendendo e vivendo isso, a dicotomia de pensar em como eu tenho tanto prazer e habilidade em algo, mas não sei se devo me entregar profissionalmente a isso, desaparece.

Há em muitos a vontade de servir a Deus em algo “realmente espiritual”. No entanto, o que essa visão não compreende é que não há motivos para separação entre coisas espirituais, que são coisas ligadas ao dia a dia da igreja e adjacentes, e coisas seculares, que é todo trabalho realizado fora dessas realidades. Antes, tudo na vida do cristão é sagrado e é espiritual, na linguagem de Schaeffer:

A verdadeira espiritualidade cobre toda a realidade. Existem coisas que a Bíblia nos diz como absolutas, que são pecados — não se conformam com o caráter de Deus. Mas além destas, o Senhorio de Cristo cobre toda a vida e a cobre por igual. Não é apenas que a verdadeira espiritualidade cobre toda a vida, mas cobre todas as partes do espectro da vida, de forma igual. Neste sentido não existe nada na realidade que não seja espiritual

Com essa compreensão o cristão não se culpa caso escolha uma profissão comum que lhe dê prazer ou uma que lhe tenha sido dada por circunstâncias da vida. Não há nenhum problema em não ter um cargo relacionado ao momento de culto e não há nenhum problema em passar por uma caminhada de atuação em várias áreas até se encontrar profissionalmente.

E como balizar as minhas ações para não me deixar ser engolido pelas tendências e valores do mundo? Uma conhecida frase de agostinho joga luz sobre isso:

Ame a Deus e faça o que quiser.

Agostinho não está falando sobre fazer qualquer coisa e de qualquer forma, o ponto é, o amor a Deus nos molda de tal forma que toda a nossa tomada de decisões é mudada.

Assim ao invés de buscar um mapa que me mostre exatamente o caminho que eu preciso seguir, desejando com isso evitar toda dúvida, dor e angústia eu passo ter uma bússola que me mostrando a direção, não impede que eu caia em buracos e tropece em pedras, mas impede que eu me perca na longa caminhada.

Mas então não seria melhor um mapa? Um GPS? Um piloto automático?

A questão é: encontrar a riqueza que existe em ser formado na caminhada. Talvez por isso, Jesus não simplesmente vem em forma humana, adulta e se dirige para a cruz em apenas um momento. Mas se submete a uma longa caminhada de anos de crescimento, angústia e devoção. Para mostrar que o chamado não é para estar pronto, mas é para ser formado. Não é para ser um herói que sobe em um pódio, mas para tomar uma cruz e confiar na vitória de outro.

E o que isso tem a ver com trabalho? Tem a ver pois não há um caminho pronto, mesmo em áreas mais óbvias da vida, haverá sempre uma formação, mudanças, dilemas, crescimento. E essa é a forma que Deus escolheu para que nos encontremos nesse mundo.

E diferente disso, uma espiritualização exacerbada dessa realidade cria jovens frustrados com suas áreas de atuação, afinal, como eles não conseguem muitas vezes usarem o sue trabalho diretamente para coisas supostamente espirituais, eles passam anos se culpando e pensando em sua falta de coragem de largar tudo e ir para o campo missionário. Mas talvez oque precisamos entender é que não há campo missionário maior que as cidades e não há mandamento maior do que o serviço em amor, e serviço, para a maior parte de nós, será realizar trabalhos comuns em lugares comuns e isso jamais deixará de ser espiritual para um cristão. Afinal, foi na vida comum que Jesus nos mostrou como sermos realmente humanos.

--

--