Eu não quero ser cristão

Matheus Henrique
Vivendo Coram Deo
Published in
5 min readFeb 25, 2019

Quando eu era moleque, me lembro de ter me chateado algumas vezes por ser crente. Eu queria aprontar alguma, mas eu sabia que aquilo era errado e as circunstâncias quase sempre eram desfavoráveis aos meus intentos. Isso aconteceu novamente esses dias. Eu quis pecar, mas as pessoas ao meu redor e os acontecimentos claramente me impediram. É claro que várias vezes eu de fato consegui pecar, mas outras muitas vezes eu fui impedido, e em algumas eu percebi isso e me senti contrariado.

A verdade é que eu não quero ser cristão. Eu quero mesmo é ser pecador. Todavia, Deus me impede. Quando a sanidade me retorna e eu olho o motivo da minha frustração, fico agradecido pelos “todavias” de Deus na minha vida. Quantas coisas lastimáveis eu teria feito, quão pior eu seria se não fosse a graça dEle.

Isso é a preservação dos santos [1], quinto ponto do calvinismo. É a doutrina, cunhada formalmente durante sínodo de Dort [2], que estabelece que Deus preservará aqueles que salvou até o dia da redenção, de modo que eles não podem mais perder a salvação. Uma vez salvo, salvo para sempre.

Essa doutrina não se restringe a uma denominação, mas é comum a vários protestantes históricos, inclusive aos batistas como eu. Na declaração de fé dos Batistas Brasileiros (CBB) temos: “A mesma graça, por meio da qual a pessoa alcança a salvação, dá certeza e a segurança do perdão contínuo de Deus e de seu auxílio na vida cristã” [3]. Na Declaração batista de New Hampshire, talvez a mais importante da denominação, temos: “Cremos que são crentes legítimos aqueles que resistem até o fim; que seus perseverantes vínculos com Cristo é o grande marco que distingui-os dos professos superficiais; que uma especial providência zela por seu bem-estar; e eles são guardados pelo poder de Deus através da fé para a salvação” [4]. Até mesmo alguns arminianos concordam com a preservação dos santos, e os que não corroboram com a doutrina, enfatizam que a salvação se perde apenas em pecados específicos, como a apostasia [5].

Se tem uma doutrina os autores desse blog amam, é a preservação dos santos, porque a vivenciamos em nossa luta por santidade e somos gratos a Deus por nos manter firmes. A bondade de Deus nos persegue!

Um trabalho trinitário

Muito se fala no agir da Trindade na obra da Salvação, desde o sacrifício e ressurreição de Jesus, até o convencimento e o alcance da graça aos eleitos. Mas é belo ver esse agir continuar em nós até a consumação. Veja o Filho definindo sua relação com o Pai através do trabalho de preservação:

As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna, e elas jamais perecerão; ninguém as poderá arrancar da minha mão. Meu Pai, que as deu para mim, é maior do que todos; ninguém as pode arrancar da mão de meu Pai. Eu e o Pai somos um”. (Jo 10.27–30)

Todo o que o Pai me der virá a mim, e quem vier a mim eu jamais rejeitarei. Pois desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas para fazer a vontade daquele que me enviou. E esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum dos que ele me deu, mas os ressuscite no último dia. Porque a vontade de meu Pai é que todo o que olhar para o Filho e nele crer tenha a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia”. (Jo 6.37–40)

Ou como o Espírito entra com um papel fundamental nessa obra:

Nele [em Cristo] fomos também escolhidos, tendo sido predestinados conforme o plano daquele [Deus Pai] que faz todas as coisas segundo o propósito da sua vontade, a fim de que nós, os que primeiro esperamos em Cristo, sejamos para o louvor da sua glória. Nele, quando vocês ouviram e creram na palavra da verdade, o evangelho que os salvou, vocês foram selados com o Espírito Santo da promessa, que é a garantia da nossa herança até a redenção daqueles que pertencem a Deus, para o louvor da sua glória. (Ef 1.11–14)

Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo! Conforme a sua grande misericórdia, ele nos regenerou para uma esperança viva, por meio da ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma herança que jamais poderá perecer, macular-se ou perder o seu valor. Herança guardada nos céus para vocês que, mediante a fé, são protegidos pelo poder de Deus até chegar a salvação prestes a ser revelada no último tempo. (1Pe 1.3–5)

A graça que te trouxe manterá você fiel a Mim

Eu jamais me manteria salvo se não fosse por Deus. Ele age em meus membros para lutar, mas é Ele quem luta. Se algo dependesse de meu esforço, eu estaria fracassado. Além disso, isso não seria graça, mas haveria algum mérito meu nisso. Não entender que nEle vivemos e nos movemos, que por Ele, isto é, através dEle são todas as coisas, é não entender o amor e poder de Deus no evangelho. Eu estou bem certo que nada pode me separar do amor de Deus, nem mesmo eu.

A doutrina da preservação dos santos me enche de louvor e gratidão. Quando caio e me encho de amargura e culpa, Deus me levanta. Quando retorno ao pecado e me deprimo, Ele cuida das minhas feridas e me carrega consigo. Quando resisto e persevero, não eu, mas Cristo em mim. Prossigo com certeza de que eu sou a centésima ovelha, mas meu Pastor é bom e estou convencido de que Ele irá completar sua obra em minha vida. Glória, glória somente a Deus.

Em “Canção de Oséias”, ouvimos a história da prostituta que somos nós. Mas sempre, sempre, sempre, meu coração se agita ao ouvir a conclusão da música:

Abandonada pela rua, eu te encontrei imunda e nua, mendigando o pão que já te dei.
Eu cumpro a minha parte na aliança. Não existe mais distância. No deserto onde estavas nascerá um jardim
E a graça que te trouxe e manterá você fiel a mim

Notas

[1] O termo é mais conhecido como “perseverança dos santos”, mas eu gosto mais quando pastores usam “preservação”.

[2] O Sínodo de Dort foi uma deliberação pela Igreja Reformada Holandesa sobre a questão do arminianismo, realizada em 1618.

[3] Princípios batistas: http://www.convencaobatista.com.br/siteNovo/pagina.php?MEN_ID=21

[4] Confissão de New Hampshire: http://www.monergismo.com/textos/credos/new.htm#cap11

[5] Perdoem-me se cometi alguma imprecisão ao citar a posição arminiana. Não sou profundo conhecedor das doutrinas arminiana nem em qualquer outra. Não é pessoal.

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