Victor
Vivendo Hip Hop
Published in
5 min readApr 15, 2021

--

Barka EP parece velejar em alto mar. A história contada por Makalister em 9 faixas tem início, meio e fim. Vemos o artista encarar os mais íntimos sentimentos e compreensões da vida, transitando entre as pressões, cansaços, mágoas, até o anseio pela vida, desde letras inflamadas a profundas auto análises.

Apesar dos seus 34 minutos, é impossível tentar ilustrá-lo sem passar por cada faixa. A impressão que passo se detém quase completamente aos versos, pela ciência de que a fotografia e o instrumental no trabalho tem um universo próprio.

“Cartas que deixo para o vento” desenha a sujeira no ambiente, que desencadeia o cansaço, a falta de poder de ação, o desapego do artista. Se vê desnorteado: “derrubo coisas quando acordo procurando meus calçados/ encharcado de suor do sonho louco”
Ao passo que sente a pressão, mostra o ar de aceitação e reconhecimento, se colocando pronto para emergir.

Em “Gaivotas”, o flow dita a sensação do som. Cada vez mais cheio da pressão, observa como tudo é tão passageiro, tão datado. Ele mostra saber que a trilha a ser percorrida é farta, e nada que tente esgotá-lo em termos e classificações vai ser efetivo, ele já está no ar, tal gaivotas.
Nos tropeços, a vontade de se render foi levada embora pela ajuda que recebeu. Com as imagens flertando todo o tempo com os versos, a magia vai sendo pressentida.

A faixa seguinte é “Chantal”, que possui elementos que fizeram remeter à Laura Muller Mixtape, muito pela forma altamente detalhada do sentimento que o apaixona. Chantal é uma carta de amor e uma lição sobre “deixar estar”.

Na primeira das três excelentes participações de Barka, “Estrela Polar” mostra um Makalister que, por constantemente passar por boas e más situações, compreende que a magia do existir é o não saber, é se colocar aberto às surpresas. Faz sua arte existir até mesmo nas ruínas, onde parece estar agora, expondo a falta de presença, o brilho ofuscado. Sente a pressão mas observa o mar calmo. Com a voz que mais combinou com o ep, Iara mostra suas dores e a vontade de estar sozinha, ao mesmo tempo em que teme a solidão. Ao passo que brilha, já está morta, rimando de novo o mesmo remorso.

Na faixa que dá nome ao EP, em “Barka (O Que Sobrou de Mim)”, a metáfora das folhas secas na calha traduz como se encontra Makalister. Seco de alma, com o corpo mal se aguentando, faz o que tem que ser feito para se levantar. Ele vê se aproximar dele algo em que se reconhece, e nisso muitas coisas de valor (como moedas de ouro) aparecem pra ele. Mas todo esse brilho cega e o fardo é pesado, então escolhe por seguir sem isso. Tudo o que há de ser e tudo o que não há está muita bem encaminhado pelo universo, todos os segredos se desvendam, tudo num plano extra sensorial, metaforizado ali pelo mar.

Sente o cansaço, vê que tudo é temporário e insignificante. E é por enxergar isso que percebe que a força toda habita nele mesmo, por nada ser eterno não há nada a se temer, a se desesperar. Nada que tente eternizar algo pode explicá-lo, somente ele sabe quem é.

Vagando por incertezas, demonstra apreensão com males da vida em “Tema dos Meus Sonhos”. Após se ver perdido, andando em círculos, recobra a força e a lucidez, “agora avanço como Dragões-de-komodo”. Percebe a própria inocência ao observar pequenos detalhes da vida, essa que parece ter endurecido o seu eu, criando um vazio de emoções. É nos versos seguintes que está a referência que mais pode ilustrar o som, “design de Gaudí”. O trabalho do arquiteto na Sagrada Família é decorado por serpentes, lagartos, dragões, representando sombras que fogem da estrela que brilhará no alto. Há adornos de fauna e flora, coroas de flores, árvores, animais. Para Gaudí, a Sagrada Família era uma viagem imersa através do espaço e do tempo, para liberar os limites do invisível. Nos versos, “Louça revelada nos escombros/ Design de Gaudi/ Tema dos meus sonhos”. Seriam seus sonhos cheios de vida, cores, formas? Ou seriam sempre enigmáticos, simbólicos?
Makalister segue ilustrando o abandono, o descaso, a perda das coisas belas.

Na mudança para um instrumental mais inflamado, com instrumentos muito bem destacados, “Na Prensa Francesa” parece ser o estágio final da autoconsciência do artista, é sua expressão de existência. “As coisas mudam sem avisos/ eu estou pronto pra isso”. A mensagem é política, de descrença no que é mostrado para ele, ao passo que sabe que o que ele quer mostrar é muito mais grandioso. É um grito para o próprio estilo, “como se fosse um Basquiat jamais visto na vida”, um com uma expressão tão própria quanto, camuflado pelo anonimato.

“Semelhante aos Acasos e Encontros”. Ao passar pela sensação do abismo, Makalister se mostra pronto para o que a vida tem a oferecer, como barka no rio que corre. As coisas se mostram pra ele e nelas ele vê um significado, uma mensagem. Enquanto se propõe a prosseguir no balanço das ondas, revela que o modus operandi da sua escrita é o mesmo da sua vida, semelhante aos acasos e os encontros.

Beli Remour é voz do momento mais reflexivo do som, assumindo que a vida coordena e sabe das coisas, mas se questionando do valor dessas coisas, e até mesmo se existe algum valor. A parceria na faixa remete à melhor experiência que tive com o disco “Ondas”.

Maka materializa a presença nos versos seguintes, dizendo que o detalhe é que tem valor, isso é que deve ser apreciado. A sensação de estar vivo é escancarada pela forma como progride o artista, até chegar no ápice.

Na última faixa, “Estações”, aparece no clipe Makalister de corpo inteiro pela primeira vez. Parece existir na faixa um equilíbrio, um entender da forma de se adaptar, encontrando na vida cenários ideias para resguardá-lo quando assim for necessário. Os versos são uma descrição precisa do cenário. Mostra um entender de que tudo muda o tempo todo, como estações, e que querer se prender à ideia de que se é o mesmo é um erro.

Matéria Prima caminha entre duas viagens, a de trem, em que detalha as paisagens que enxerga, e a viagem na própria mente, arraigada por lembranças, devaneios, respostas e questionamentos. A memória remete a figura de professora, mostrando que ele aprendeu lições com tudo. Matéria parece chegar a algum lugar.

Makalister mostra que as mudanças da vida determinam os rumos. Dando um passo adiante das faixas anteriores, dos instantes de intensa vivacidade, o artista diz que momentos vêm e vão. Ao se questionar o sentido da própria vida, é tomado pela consciência de que tudo há de passar, exceto os poemas e as cicatrizes.

Toda vez que morre vida, nasce vida. Ideia que entra é ideia que parte. Um momento que existe é um momento que termina.
“Toda vez que morre o brilho de uma estrela, outra nasce em minha palma
toda vez que olho pro céu um dejavu me faz pensar nas estações”.

No fim do clipe, Makalister parte.

--

--