Sing About Me, I’m Dying Of Thirst e a luta contra o mal
A música “Sing About Me, I’m Dying of Thirst” (em tradução literal: “Cante Sobre Mim, Estou Morrendo de Sede”) é a décima de dezoito músicas que compõem o reconhecido e premiado álbum “good kid, m.A.A.d city” (Top Dawg Entertainment, 2012), de Kendrick Lamar, e contém 12 minutos de trilha. Antes de refletir sobre a letra e seu conteúdo, é preciso entender o projeto do álbum em si, que coesamente buscou retratar a realidade negra na região em que o rapper cresceu e viveu: Compton, Califórnia. Entre o tráfico, a guerra das gangues locais, a prostituição e o confronto direto com a polícia, Kendrick perpassa sua infância e adolescência contando histórias tristes, sinceras e curiosas, resumindo bem o sentimento que buscou retratar ao longo de seu projeto:
(…) Voltando ao bairro e indo para lugares diferentes, me colocando de volta no mesmo espaço onde nós costumávamos estar, trazendo de volta pensamentos, lembrando como eu estava me sentindo.
Dividida em duas grandes partes, a música dá voz, em seu primeiro momento (intitulado de “Sing About Me”), a três grandes vozes que levarão o ouvinte a entender, em pequenos recortes, como é viver na cidade em que o rapper cresceu. As personagens que contarão seus relatos no início da trilha são moradores da região, como o intitulado “irmão de Dave”, “irmã de Keisha” e, por fim, o próprio compositor.
Com um som mais leve e saudoso, Lamar dá voz aos pensamentos e ideias do irmão de seu amigo Dave logo após a morte desse numa confusão entre as gangues do bairro, em que o amigo estava no local errado e “com as cores erradas”. O irmão de Dave, nas primeiras estrofes da música, expõe seu medo de morrer antes de dizer as coisas que deveria a Kendrick (devido à insegurança de viver numa região tão perigosa como Compton, em que não se sabe quando será seu último dia) e sua importância nesse momento tão trágico para a família.
[Parte I: Sing About Me] Acordei de manhã e lembrei de ligar pra você
Caso eu não esteja aqui amanhã (…) Este orfanato que chamamos de gueto é tipo uma rotina E ontem à noite foi apenas uma outra distração Ou uma reação do que consideramos loucura Tô ligado no que aconteceu Você correu pra fora quando ouviu meu irmão gritando por ajuda Abraçou-o como um bebê recém-nascido e fez ele sentir-se Como se tudo estivesse bem, Em uma treta que ele tentou arrumar, mas o tipo de bala que o atingiu foi contra a sua vontade Enquanto o sangue derramava em suas mãos Meus planos bastante vingativos Todo mundo é uma vítima em meus olhos Quando eu sair, o ritmo é de assassinar E o lado de fora escureceu Tem um demônio colado nas minhas costas sussurrando “Pegue-os” E eu os peguei, e tô pouco me lixando Essa é a mesma mentalidade que disse ao meu irmão para não se esconder Na moral, é loucura como ligamos pra cores (…) E eu te amo, porque você amou meu irmão do seu jeito Só me prometa que vai contar essa história quando for famoso E se eu morrer antes do seu álbum sair, eu esper… *sons de tiros*
É dessa forma que o rapper retrata os sentimentos do irmão de Dave concomitantemente com a realidade de seu bairro, em que a violência ditava as relações e os espaços urbanos. Dave sintetiza esse raciocínio ao relacionar Compton como um “orfanato de gueto”, em que os meninos do bairro são criados não por suas mães, mas pelas ruas. Interessante notar como Kendrick retrata um crime de homicídio sem nem ao menos citar a presença da segurança pública, reflexo da condição social que Compton se inseria, onde os problemas eram resolvidos pelas gangues, que representam paradoxalmente a lei na região. O irmão de Dave sinaliza como o mal toma conta de seu corpo quando ele reflete sobre a morte do seu irmão, como a vingança reage instantaneamente à situação e os crimes de sangue se perpetuam no cenário.
Não obstante, o irmão de Dave relata sobre a importância das cores no seu bairro, isso porque seu irmão foi morto por vestir as cores da gangue rival no local errado. Compton possui duas gangues que constantemente entram em conflito e controlam determinadas áreas na região: os Pirus ou Bloods (que usam a cor vermelha) e os Crips (que usam a cor azul). Lamar sintetiza como a violência se mimetizou no simples uso de “cores erradas”, em que bastava ser identificado com a cor alheia para sofrer as sanções determinadas pela gangue da região. Por fim, o irmão de Dave espera que o rapper um dia possa contar essa história para o mundo, que é justamente o que Kendrick faz, mas aparentemente o irmão de Dave também se torna mais uma vítima das gangues, pois ao fim de seu verso, sons de tiros insinuam que ele foi morto antes do álbum ser lançado, como ele mesmo imaginava.
O segundo verso da música ainda se encontra na primeira parte, e reflete sobre outra questão que toma conta de Compton e da mente do rapper: as mulheres e a prostituição. Kendrick, em álbum anterior (Section.80), relata a história de uma prostituta chamada Keisha na música “Keisha’s Song (Her Pain)”, que é morta e estuprada. Nesse segundo momento da parte um, quem toma voz agora é a irmã de Keisha, questionando o rapper por ter exposto sua família daquela forma e o mal de Compton daquela maneira. Em sua concepção, não havia nada de bom para ser lembrado, e Kendrick teria feito isso por alguma espécie de vaidade.
[Verso 2] Você escreveu uma música sobre a minha irmã na sua fita E chamou ela de “Section.80”, a mensagem parecia com a de “Brenda’s Got a Baby” Que loucura, eu ouvi falar sobre isso Mas duvidei de sua ignorância Como você pode? Colocando-a e expondo nessa merda Julgando seu passado nessa merda Bem, é completamente o meu futuro (…) Mas foda-se essa de: “Desculpe por sua perda”, porra Minha irmã morreu em vão, mas em que ponto você quer chegar? Se você não tem nem onde pôr essa cara deslavada? Eu espero… Sua resposta chegou tarde demais (…) Você tá de sacanagem com esses caras, falando que pode ajudá-los com a minha história Você pode me ajudar, se você vender seu corpo para mim Não me ignore, mano Foda-se a sua glória, mano, essa porcaria…
A irmã de Keisha traduz a dor dos que perdem um ente querido, mas principalmente reflete que a vida que sua irmã levava não era exclusiva dela, mas de muitas garotas que vivem em Compton e enxergam na prostituição uma forma de ganhar dinheiro. É nesse sentido que ela diz “Bem, é completamente o meu futuro”, pois em sua concepção, Lamar não expôs só a tragédia de sua irmã, mas a tragédia de uma comunidade toda. Para ela, Kendrick apenas proliferou o mal que existe em Compton, dando voz à violência desmedida no bairro e sem se preocupar com as consequências para os que ainda sobrevivem com os males de Compton diariamente. É por isso que ela diz que o rapper não ajudará ninguém expondo essa história, mas ajudará “vendendo o corpo dele” para ela, pois atualmente ele é um rapper muito famoso no cenário norte-americano.
Em contrapartida, o terceiro verso da primeira parte traz o próprio Kendrick Lamar refletindo sobre tudo o que fez com essas histórias que viveu e conheceu. Seus medos, angústias e ideias também fazer parte do relato e demonstram a real intenção do autor ao contar todos esses casos ao longo de sua música. Não menos importante, é crucial notar como o rapper está atrás do perdão (seja divino ou das pessoas que o conheceram) pelos males que cometeu nessas histórias ou em outros momentos vividos em Compton.
[Verso 3] Às vezes me olho no espelho e pergunto: Estou com medo da morte? Se é hoje, espero ouvir um Clamor vindo do céu, Tão alto que possa derreter um demônio Com o Espírito Santo, até que se afogue no sangue de Jesus Eu escrevi alguns raps que garantem o meu destino Atraindo o cheiro da morte, Garantindo que minha lealdade Com o outro lado possa vir em breve E se eu for condenado, talvez a ferida Ajude minha mãe a ser abençoada por muitas luas Eu sofro muito E a cada dia o espelho fica mais difícil de se ver Eu dei nó no meu estômago Eu não sei porque estou apaixonado pela morte (…) Talvez porque eu sou um sonhador e o sono é primo da morte Realmente preso nesse sistema, me pergunto quando vou ficar de boa E você está certo, seu irmão era como um irmão para mim E a situação da sua irmã foi o que me chamou atenção No sentido de falar algo que é mais real do que a tela da TV De qualquer maneira, eu não estava tentando ofender ou me intrometer em Sua vida pessoal, eu ficava como: “Isso precisa ser dito” Amaldiçoando a vida de 20 gerações depois de sua alma Exatamente o que aconteceria se eu não continuasse fazendo rap Ou tivesse sido enganado com drogas, dinheiro e armas Eu conto tudo sobre a vida nessas músicas Olho para os fracos e choro, Rezo para que algum dia eles tenham forças Lutando por seus direitos, Mesmo quando você está errado E espero que pelo menos um de vocês cante sobre mim quando eu for embora Agora, eu valho a pena? Eu trabalhei o suficiente?
O rapper encerra assim a primeira parte da canção, demonstrando seu lado sensível ao mal que cometera, mas esperando ser lembrado pelas coisas boas que fez e, acima de tudo, esperando ser perdoado. Se não for, ele almeja que, pelo menos, sua “condenação” garanta o céu para sua mãe. O autor ainda sinaliza como sua música se aproxima da morte a todo momento, reflexo da realidade que perpassa sua vida. O fato de viver com a morte em cada esquina, de cada ente querido ou desconhecido, a simples concepção de que sempre a vida está se esvaindo em algum canto faz de Kendrick um “apaixonado” pelo tema. E ele mesmo constata o caráter estrutural dela, ao perceber que está “realmente preso a este sistema” que replica violência e dor. Lamar se defende das acusações da irmã de Keisha dizendo que o que acontecia em Compton era “mais real do que a TV podia mostrar” e precisava ser dito e exposto por mais que aquilo ainda causasse o mal e o sofrimento. Era necessário que as pessoas soubessem a verdadeira vida que indivíduos marginalizados pelo sistema levavam diariamente.
Nesse momento, ao término da primeira parte, a música é recortada por um esquete que traz Kendrick e seus amigos conversando logo após a morte de Dave. O irmão de Dave também surge com ódio, clamando vingança e confessando estar cansado de ser um alvo tanto das gangues quanto da segurança pública, enquanto nota-se desespero nas falas do resto do grupo
[Esquete] — Ei, ei, ei, onde você está indo? — Mano, o irmão do cara… Aqui, mano, ele vazou, parceiro. — Estamos na quebrada agora, mano… Tá com a gente aqui, mano. — Mano, o irmão dele. Eles mataram o nosso parceiro, mano. Bem aqui na quebrada. — Bele… Beleza, mano! Tá suave, só me ligue de volta, mano, só me ligue de volta. — Então, o que vamos fazer? O que vamos fazer? — Pa-parceiro, temos que voltar agora. Eu quero é que se foda! Temos que voltar agora… — Foda-se! Estou cansando dessa merda! Estou cansado de correr, estou cansado dessa merda! Meu irmão, parceiro!
Dá-se, então, início à parte II da música, conhecida como “I’m Dying of Thirst”. Com um tom mais acelerado, pesado e ao mesmo tempo melancólico, Kendrick Lamar expõe todas as dores e o ódio que vem sentindo pela situação dos negros nos Estados Unidos, diversas vezes comparando sua realidade ao inferno e assumindo que está “morrendo de sede”. Esta sede, no entanto, não se trata de nenhum desequilíbrio fisiológico do seu corpo, mas sim uma sede de vingança. Vingança por ver seu próprio povo se matando ou por ver a polícia fazendo isso; por ver a mídia só aparecer quando as tragédias já aconteceram. Entre todas as suas dores, o rapper vai citando angústias, a rotina criminosa e sua busca para repelir os pecados ao longo da sua jornada, demonstrando o quão importante é para ele a religião e como, mesmo com todo o ódio em seu coração, ele ainda busca um caminho diferente do crime em vistas de evitar o pior para si no dia do julgamento final.
[Parte II: “I’m Dying of Thirst”] Cansado de correr, Cansado de caçar Meu próprio povo, Mas sem desistir Os pneus tão sempre cantando, O motorista é bom com as mãos no volante Quem disse que não estávamos Morrendo de sede? Morrendo de sede? Morrendo de sede? (…) O que estamos fazendo? Quem estamos enganando? O inferno é quente O fogo percorre Para queimar pela eternidade O retorno do aluno Que nunca aprendeu a viver com o lance do crime Cansado de correr, O coro está cantando Nos convidaram pra ir, Nós mentimos e não vamos Agora, de volta aos negócios, carregando as armas (…)
Kendrick traça aqui um paralelo entre a vida no gueto e a busca espiritual. Ao questionar quem eles estão enganando, o rapper demonstra ter consciência de que os atos criminosos podem passar despercebidos pela segurança local, mas não aos olhos de Deus e, por isso, seus versos seguintes fazem referência ao inferno. Em seguida, Lamar demonstra a preocupação da comunidade em tirar os garotos do crime, ao citar o coro da igreja e o convite para que eles a visitassem. No entanto, percebe-se a relutância dos jovens em ir e fica claro que o engajamento deles já era outro: os garotos “voltavam aos negócios”, preocupando-se em carregar as armas para os próximos furtos e ataques na região, pois o crime já não é mais visto como ilícito, mas como meio de justamente reverter a situação degradante que vivem, de matar a sede que tanto anseiam.
[Verso 5] Muitos pecados Tô de saco cheio Alguém me mandou Direto pra seca Veja, tudo o que eu sei, é aprender A não levar nada de graça, se ele provocar Meus melhores dias, dias de estresse “Senhor, perdoe-me por todos os meus pecados” (…) Dinheiro, mulheres e ganância Qual é o meu próximo pedido? Seja o que for, Sei que meu túmulo está próximo Cansado de cair, cansado de correr Cansado de cair (…) Uma vez minha mãe me disse: “Visite um pastor, Me prometa E se hoje fosse o juízo final, e você estivesse sendo julgado A verdade te libertará, então seja honesto comigo Você está morrendo de sede Então pule na água, e reze para que dê certo”
Assim encerra-se a parte II da música, com a mãe de Kendrick Lamar almejando que ele “mate sua sede” justamente pulando na água para se purificar do mal e dos pecados que afligiram sua vida até então. Interessante perceber a figura de linguagem da conotação nos versos finais, em que se indica a água para “matar sua sede”, mas esta sendo uma água benta (sentido figurado), como um batismo que o rapper deveria passar para se aproximar de Deus novamente. Kendrick ainda abusa de diversas aliterações em suas letras, mas essa análise não vai ao encontro do que se procura expor neste ensaio, que é como o autor parece lutar contra o mal, seja ele aparecendo em sua comunidade, ou até como se demonstra na segunda parte, dentro de si.
Nota-se como esse tema percorre os doze minutos da trilha, em que num primeiro momento é apresentado o mal das ruas: a violência, as drogas, as brigas de gangues, a prostituição, a criminalização do gueto, a falta de segurança; num segundo momento, a luta interna de Kendrick e das pessoas que vivem na comunidade para prevalecer sobre o status quo, para encontrar a salvação e perseverar diante da sede de vingança que todos parecem carregar em Compton. O irmão de Dave sinaliza esse raciocínio quando diz que “todo mundo é uma vítima aos seus olhos”, e o mesmo se encontra no fim da segunda parte, quando Kendrick sintetiza “A briga tá estourando, não há discussão / Hereditário, todos os meus primos / Morrendo de sede, morrendo de sede, morrendo de sede”, ou seja, a sede de vingança vai sendo passada de geração em geração, porque os temas e os problemas são sempre os mesmos, o mal que acomete a comunidade são sempre reciclados.
Por fim, cabe ainda destacar o último esquete da música, que retoma o episódio da morte de Dave. Ainda completamente frustrados e nervosos por causa do acontecimento trágico, os amigos de Kendrick são surpreendidos pela vizinha do rapper, que assimila a fúria que estão sentindo e suspeita até que um deles carrega uma arma, percebendo que os meninos precisavam urgentemente de alguma salvação. Ela então proclama a “Oração dos Pecadores” com os meninos, e o exercício parece ser aceito prontamente, sinalizando o respeito à religião ainda que em condições socioeconômicas muito adversas. Os jovens se sentem abençoados e prontos para uma nova vida, que começa com o distanciamento dos crimes e do mal e, na vida de Kendrick Lamar, tem impacto crucial para o seu foco na carreira musical.
[Esquete/Outro] (…) Jovens, venham falar comigo! Isso* é o que eu penso ser? Eu sei que não é o que eu penso ser Por que vocês estão tão nervosos? Vejam, vocês jovens estão morrendo de sede Sabem o que isso significa? Significa que vocês precisam de água, água sagrada Vocês precisam ser batizados, com o espírito do Senhor Vocês querem receber Deus como seu salvador pessoal? Ok, repitam comigo: “Senhor Deus, eu venho a Você como um pecador” (Senhor Deus, eu venho a Você como um pecador) “E eu humildemente me arrependo dos meus pecados” (E eu humildemente me arrependo dos meus pecados) “Eu acredito que Jesus é o Senhor” (Eu acredito que Jesus é o Senhor) “Eu acredito que Você o ressuscitou entre os mortos” (Eu acredito que Você o ressuscitou entre os mortos) “Eu gostaria de pedir que Jesus entre na minha vida” (Eu gostaria de pedir que Jesus entre na minha vida) “Para ser meu senhor e salvador” (Para ser meu senhor e salvador) “Eu recebo Jesus para assumir o controle da minha vida” (Eu recebo Jesus para assumir o controle da minha vida) “E que eu possa viver para ele de hoje em diante” (E que eu possa viver para ele de hoje em diante) “Obrigado, Senhor Jesus, por me salvar com seu precioso sangue” (Obrigado, Senhor Jesus, por me salvar com seu precioso sangue) “Em nome de Jesus, amém” (Em nome de Jesus, amém) Tudo bem agora, lembrem-se deste dia, O início de uma nova vida, sua VERDADEIRA vida.
Artigo de Lucas Mamone. Valeu irmão!