A OUTRA

Izabel da Rosa
Vivi e escrevi
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3 min readAug 26, 2019
http://blogs.discovermagazine.com/neuroskeptic/2015/08/27/woman-stranger-in-the-mirror/#.XVKeVehKjIU

Às vezes ela é cruel. Resmunga com a imagem no espelho, critica os quilos a mais, não reconhece as mechas que adornam o rosto. E nesses momentos ela é a sua pior inimiga. Não aceita argumentos, não dá direito a atenuantes. Nada é bom, nada é suficiente. Sente que o entorno não a recebe. Será por que é mulher? Será por que é madura? Será por que não é perfeita?

Então se isola. Acarinha o gato, vê a vida pela imagem da TV, ignora o próprio diálogo. Quer uma caverna com pouca luz e sem nenhum contato.

Sabe que algum ponto já foi outra. Já viu o sol no próprio rosto, já ouviu melodiosas frases de elogio povoarem seus pensamentos. Onde está essa outra, agora que precisa tanto de uma amiga? Ela sabe ser a melhor amiga das amigas que perderam os namorados, que sofrem com os empregos mal remunerados, que reclamam da própria imagem. É a melhor ouvinte dos sonhos desfeitos, dos projetos irrealizados, dos finais infelizes a respeito de príncipes que se tornaram sapos. Ela é a amiga que gostaria de ter por perto quando o seu mundo parece inquietante, quando o céu é cinza, quando o silêncio dói.

E quer encontrá-la novamente no espelho. Chama em silêncio em uma respiração profunda, busca em uma caminhada em meio ao verde. Por que essa falta de resposta? Como acordar a outra que habita esse mesmo espaço?

Então se ocupa. Qualquer coisa para não pensar. Qualquer coisa para não ouvir os próprios resmungos. Foge dos espelhos e das vitrines. E vai para a cozinha. Experimenta temperos, faz novas receitas. Congela tudo, de tanto provar já não tem fome. Quem sabe terá visitas algum dia para o jantar. Quem sabe um dia vai querer provar o próprio tempero em noites de bom humor. Quem sabe uma voz de homem povoará a cozinha.

Depois estuda. E se exercita. E conversa com a idosa do andar de baixo. E pergunta do cachorro daquela vizinha pouco simpática. Escuta a conversa monótona do porteiro da manhã. Aos poucos percebe uma presença nova. A Outra parece estar voltando. Então a ignora. Pode ser somente uma sombra de outros dias. Não quer ilusões. A dor de perceber que a Outra não está é muito profunda.

E dorme um sono fatiado. Os sonhos são confusos, as noites são longas.

E o novo dia tem mais coisas a fazer. Trabalho a concluir, uma casa para se ocupar. Um dia, começa a cuidar da moça do espelho. Alisa uma marca de expressão, experimenta aquele óleo argentino na pinta da mão esquerda. Conversa um pouco com o rosto que a fita. Percebe que ela tem um olhar mais brilhante. Considera que tem traços bonitos, que o cabelo em desalinho tem uma cor boa. Há uma harmonia no todo.

Então sorri. A Outra voltou. E a reconhece no apoio que recebe enquanto termina a convalescença.
Na rua as cores voltaram apesar do cinza do céu. A moça da loja de roupas tem uma expressão simpática. A verdureira lhe oferece as melhores frutas. Até os preços estão mais baixos hoje.

Com certeza a Outra não é mais a outra. Fecha os olhos. Respira. Ela está ali. Forte e apoiadora. Como é bom o seu retorno. Como enriquece seus dias.

Ela mesma é a amiga que sempre desejou ter.

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Photo by Waldemar Brandt on Unsplash

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Izabel da Rosa
Vivi e escrevi

Eu não tenho os pés no chão tenho uma ânsia de asas entregues à correnteza das palavras que me visitam e contam coisas que só sabem os que sentem.