Incoerências

Izabel da Rosa
Vivi e escrevi
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5 min readFeb 6, 2020
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É um daqueles dias cinzentos em que o céu tem mais nuvens que em Londres, e tudo parece triste e parado. São aquelas ocasiões em que não consigo decidir as coisas, faço algo aqui, algo ali e nada rende.
Por fim resolvi que não vou à yoga. Distribuo minhas atividades físicas durante a semana, agora que estou nesta fase, quando preciso, urgentemente, cuidar do corpo. Porém, hoje não. Vou comprar alguns presentes de Natal e levar o presente da menina no Correio. Depois vou visitar a idosa do 14° andar no prédio da outra esquina. Ela foi muito importante na minha vida e estou há tempos sem vê-la. É tão bom ver o seu sorriso. Vou a pé. Já é exercício.

O homem entra na portaria irritado.
- Meu celular está sem bateria e preciso ligar para minha mulher. Esqueci a chave.
A mulher madura passa a mão esquerda para ajeitar os poucos cabelos e lhe atende, com um ar quase subserviente.
- O senhor pode usar o telefone do condomínio, eu só tenho que anotar o número que o senhor vai ligar.
Ele a olha, nervoso.

Na minha sala, recebo mais uma mensagem da moça de Londres. É uma brasileira que vive lá e que não conheço pessoalmente. Algo nos conecta. É a busca que ela e eu fazemos pelas famílias originais, de brasileiros adotados no exterior, que querem saber suas origens.
Hoje, ela me enviou os links das árvores genealógicas que está estudando, para que, junto com os resultados dos exames genéticos, eu a ajude a decifrar o grande enigma que cerca a história em que está trabalhando.
Eu me esforcei desde a manhã para entender a situação por inteiro e dei algumas opiniões. Depois revi outras. É assim que esse trabalho voluntário funciona. Na base do aprendizado, da tentativa e erro. Tudo é possível nas conexões humanas, apenas os exames de DNA dão algumas certezas a mais. E qualquer apoio, mesmo vindo do outro lado do oceano, ajuda.

Na portaria, o homem fala gesticulando.
- Não precisa nada disso. Me dê o telefone.
Norma fica confusa, seu ar se torna amedrontado.
- O seu Teodoro deixou ordens. A gente precisa anotar cada número que liga.
- Eu não vou te passar número nenhum.
Ela olha em volta, atordoada. A porta do elevador se abre.
Uma a moradora desce, o homem sorri e lhe abre a porta da rua, solícito.
Norma olha a cena, calada. Ninguém vai lhe ajudar.
Uma ideia lhe parece boa.
- O senhor pode usar o meu celular.
E orgulhosa completa:
- Fiz um plano novo. E posso ligar para onde quiser, sem pagar mais.

Respondo a mensagem rapidamente. Agora que decidi a minha tarde, quero sair logo. Estou na porta e me lembro de mais uma informação que não chequei. São tantos nomes, tantos detalhes. A árvore genealógica dos Mendes Ribeiro merece mais uma olhada. Abro novamente o computador, já com a sacola do presente da menina no ombro.

Norma estende o seu celular, se sentindo mais próxima daquele homem de voz irritada. Ele pega o aparelho. Encosta-se no balcão. A perna que o faz mancar precisa de apoio. Digita os números. Algo sai errado. A ligação não se completa.
- Esse teu celular não funciona. Me dê o telefone do condomínio.
- Ele funciona, mas tudo bem. Eu anoto o número…
Ele não a deixa terminar.
- Você vai perder esse emprego, mulher! Eu vou falar com o Teodoro. Ele está me devendo uma. Aquele conserto que mandou fazer no meu banheiro por causa do vazamento ficou uma porcaria. Gastei do meu bolso pra resolver. Me dê esse telefone, já disse!

Analiso detalhes que não tinha percebido antes na árvore que a moça de Londres me enviou. Anoto detalhes em um bloco ao lado. À noite vejo com calma. Agora preciso sair. Estou me enrolando muito.
Confiro a sacola. Não posso esquecer o pacote, precisa chegar antes do Natal. A menina está em um abrigo para crianças sem família, no interior do Estado. Ela tinha uma família adotiva até há pouco, mas agora está de volta ao lar. E longe da cidade onde nasceu. Eu, que a ajudei a estudar durante quatro anos estou longe também. Soube, por acaso, da devolução ao lar. Lamentei. Adoções, às vezes não dão certo.
As incoerências da vida são tantas. Lá no exterior jovens que foram levados quando bebês querem descobrir seus pais biológicos. Crianças ficaram aqui, com suas famílias desestruturadas, sofrem o abandono em lares provisórios.

Norma treme e hesita. Ele bate com a mão espalmada sobre o balcão.
- Eu nunca gostei de você. Você vai perder esse emprego, eu prometo.
Retira uma nota do bolso.
- Pegue esse dinheiro e me dê o telefone. Eu pago a ligação.
- Não precisa, seu Cesar. É só anotar o número..
Ele grita. O rosto vermelho de raiva.
- Não vai anotar nada. Me dê esse fone.
Ela treme e passa o aparelho.
Depois da ligação ele vai para a garagem esperar sua mulher.

Fecho o computador. Preciso sair já. Tudo o mais fica para depois. Confiro, novamente a bolsa. O presente da menina está comigo, também o da idosa. Vou pela portaria, preciso andar um pouco.
Um casal de meia idade entra no elevador, na garagem do segundo andar. Ele manca. Cumprimento rapidamente, ouvindo mais um áudio da moça de Londres. O elevador vai até a portaria. O casal não desce, vão subir ao oitavo andar, onde moram.
Norma me cumprimenta.
- Tem uma carta para a senhora.
Com uma frase rápida eu a dispenso. Preciso sair logo.
Norma me diz mais alguma coisa e então percebo o gesto dela. Com a mão, onde um dedo é deformado, ela enxuga o rosto. Eu estranho. Ela é sempre tão formal e educada.
- Você está bem ?
Ela não consegue se segurar e solta um choro soluçado.
Sem entender a gravidade da situação, ainda voltada para porta, eu estendo a mão.
- Acalme-se, respire fundo.
Os soluços continuam e eu percebo que algo sério aconteceu. Contorno o balcão que nos separa e lhe dou o meu melhor abraço. Ouço a história que a machucou, conforto-a até que sua respiração volte ao normal.
E me demoro ali, sentindo-a frágil como uma criança de dois anos.
Talvez tenha sido por isso que meu dia estava tão confuso hoje. Era para eu estar, nesse exato momento, na portaria e poder dar este abraço.

Vou para a rua com o coração triste, pensando no que posso fazer para amenizar a situação. Porém, me sinto agradecida por ter tido a oportunidade de doar algo tão simples e tão valioso. Solidariedade.

As incoerências estão no mundo. Não precisam estar em nós.

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Izabel da Rosa
Vivi e escrevi

Eu não tenho os pés no chão tenho uma ânsia de asas entregues à correnteza das palavras que me visitam e contam coisas que só sabem os que sentem.