A mentira sobre longas jornadas de trabalho

Ao contrário do que diz a cultura corporativa do século XX, trabalhar em excesso — e se gabar por isso — não é produtivo para você nem para sua empresa

Sérgio Spagnuolo
Volt Data Lab

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Por Sérgio Spagnuolo, Editor do projeto de jornalismo de dados Volt | Twitter: @ProjetoStock

George Constanza deixou seu carro dentro do estacionamento do time de baseball Yankees por três dias. Seu chefe reparou que o carro dele estava sempre lá. Resultado: George conseguiu uma promoção, pois acreditava-se que era o primeiro a chegar e o último a sair do trabalho.

A premissa do episódio “The Caddy”, da série de comédia nova-iorquina “Seinfeld”, explica bem um dos vícios do corporativismo: às vezes é preciso ser mais do que produtivo, criativo ou comprometido com resultados — é necessário também se mostrar presente o tempo todo.

Esse vício não é pura maldade capitalista, mas sim parte de uma métrica obsoleta de controle, uma das poucas formas que seus empregadores consideram para dizer se você está trabalhando ou não.

É por isso que muitos funcionários presenciais precisam “bater cartão” e muitos funcionários remotos (que trabalham em casa ou em campo) precisam ficar logados em seus softwares de mensagens instantâneas, de olho em seus celulares corporativos.

Claro, às vezes horas extras são creditadas no salário ou vão para “bancos de horas”. É ótimo ganhar uns trocados a mais por algumas horas necessárias ao trabalho. Todos fazemos.

O problema é quando isso é extrapolado, em medidas poucas vezes controláveis. Funcionários que não batem ponto estão mais expostos a horas excessivas. Os com celular corporativo e laptop que levam para casa, também. Àqueles que viajam com frequência, idem. Ou, pior, os que batem cartão de saída e continuam trabalhando no escritório. Acontece.

É atribuída a Einstein — e a uma série de outras pessoas — a frase “o único lugar onde sucesso vem antes de trabalho é no dicionário”. É inegável, mas até mesmo um dos maiores físicos do mundo contemplava o ócio regularmente.

De alguma forma, a cultura do excesso de trabalho sempre nos pareceu correta. Afinal, muitos de nós pensam que quanto mais trabalhamos, mais produzimos; e quanto mais produzimos, mais ganhamos; e quanto mais ganhamos, maior nosso sentimento de conquista. E o tamanho da conquista corresponde ao tamanho da felicidade. Certo?

Não é bem assim. Se fosse, muitos empregados corporativos, trancafiados em escritórios com divisórias acima da cabeça, cadeiras desconfortáveis e ar condicionado congelante, não fantasiariam largar tudo e morar na beira da praia, vivendo de bicos ou como autônomos. Algumas pessoas fazem isso, e é muito legal ver acontecer, mas se todos tomassem essa atitude, não haveria litoral suficiente no Brasil para abrigar toda essa gente.

Nós continuamos onde estamos não porque somos medrosos de largar tudo, mas porque construímos nossas vidas assim. Muitas vezes, é onde queremos estar e o que queremos fazer. Outras, por falta de oportunidades ou de recursos. É por isso que muitos não mudam, e não há nada de errado com isso.

O excesso de trabalho nos cansa, nos frustra, nos deixa mais longe da família e dos amigos e não nos recompensa propriamente. O corporativismo exagerado resulta em falta de liberdade criativa, em horários fixos de trabalho e recompensa aqueles mais confortáveis com o sistema.

A meritocracia passa a valer não para aqueles mais criativos ou mais produtivos, mas sim para aqueles que conseguem ter força para aturar esse sistema com menos desgate físico e emocional.

Isso tudo deixa infelizes as pessoas que não se adaptam à inflexibilidade dessa situação. Arrisco-me a dizer que são a maioria dos trabalhadores corporativos — ou seja, aqueles que trabalham em estruturas corporativas com cultura própria, como grandes empresas, governos e outras instituições, ao contrário, por exemplo, de um microempresário ou de um vendedor ambulante.

Terry Freedman/Flickr

Debate sobre produtividade

Concorde você ou não com o que falei acima, eu não tirei nada disso do chapéu.

Muitas das ideias que são do especialista Tony Schwartz, o qual eu venho acompanhando à distância há um tempo.

Schwartz é presidente da consultoria The Energy Project, que busca mudar as relações entre empregadores e empregados. Colaborador do jornal The New York Times, ele já escreveu extensamente sobre o assunto.

Você pode acessar alguns dos melhores textos de Schwartz aqui (“Por que você odeia seu trabalho”), aqui (“Maiores demandas no trabalho prejudicam funcionários e companhias”) e aqui (“Relaxe, você será mais produtivo”).

O interessante de Schwartz é que ele realmente entende as relações trabalhistas, não éum escritor de auto-ajuda tentando motivar os leitores a suportarem o peso da vida profissional. Sua expertise vem através de pesquisas, entrevistas e contato com executivos de alto e médio nível e até com funcionários mais baixos nas empresas.

Ex-jornalista e escritor de livros de não-ficção, Schwartz tem trabalhado para mudar o paradigma de que excesso de trabalho significa produtividade. Grosso modo, ele questiona o modelo 24/7 (24 horas por dia, 7 dias por semana) tão prezado por muitos norte-americanos.

Diz ele: “Não é realista construir companhias sustentáveis de alto desempenho por meio de práticas insustentáveis de trabalho. Sanar as principais necessidades das pessoas, ao invés de simplesmente tentar arrancar mais trabalho delas, é o que torna possível para elas trabalharem mais efetivamente.”

Ele dá um motivo para isso: “Quando as pessoas trabalhavam um excessivo número de horas, elas regridem — o que significa que elas inexoravelmente se degeneram de um estado superior de capacidades e consciência para um estado mais primitivo e reativo. Fadiga, como observou tão precisamente Vince Lombardi, faz de todos nós covardes.”

Parece óbvio, mas simplesmente não é assim para muitas empresas. (E nós estamos falando aqui de empresas em países que gozam do mínimo de liberdade e democracia. Seria impossível ver esse debate em países de poucas liberdades de expressão e de alta exploração de mão de obra, como no Sudeste asiático.)

Uma pesquisa ressaltada pelo Upshot, projeto de jornalismo de dados do NYT, mostrou que todas as faixas de renda assalariada, da baixa até a alta, tiveram aumento na jornada de trabalho nos Estados Unidos nos últimos 40 anos.

Àqueles com as menores rendas (linha inferior do gráfico) foram os que tiveram o maior crescimento das jornadas. Mas os maiores salários (60th a 100th no gráfico) também tiveram um aumento considerável.

Infográfico: Upshot/The New York Times

Vale lembrar que um ano tem 8.760 horas e 52 semanas. Ou seja, 1.800 horas trabalhadas são o equivalente a uma jornada semanal de 34,6 horas, ou 7 horas por dia de semana.

Pode parecer normal, trata-se de pouco mais de 20 por cento do nosso ano trabalhando. Agora, acrescente a isso o tempo trabalhado fora do escritório ou em trânsito para ele. Considere ainda os fins de semana (48h/semana), o seu tempo dormindo (8h/dia), o tempo de férias (720h/mês), breve recesso Natal/Ano Novo (48h/ano), feriados (96h/ano) e alguns dias de ausência por licença médica (48h/ano).

Essa carga horária fica cada vez mais pesada.

Segundo o Upshot: “Para trabalhadores com baixos salários, o problema não o excesso de horas, mas a escassez delas. Seus itinerários são frequentemente imprevisíveis, e seus salários cresceram apenas modestamente.”

“Para a elite dos trabalhadores, o desafio é o conflito entre a vida moderna de família e uma cultura de trabalho na qual longas jornadas tornaram-se um símbolo de status”, escreve a repórter Claire Cain Miller.

Não é a toa que uma pesquisa do Gallup de 2013 mostrou que, de 142 países analisados, a proporção de funcionários que se sentiam engajados com suas funções foi de apenas 13%.

Nas palavras de Schwartz: “A demanda por nosso tempo está cada vez mais excedendo nossa capacidade — nos drenando a energia que precisamos para dar vida plena às nossas habilidades e talentos. O aumento na competitividade e uma força de trabalho pós-recessão mais enxuta pressiona nos ainda mais. O avanço da tecnologia digital talvez seja a maior influência, expondo-nos para uma inundação sem precedentes de informações e requisições as quais nos sentimos compelidos a ler e a responder a todas as horas do dia e da noite.”

O que fazer então?

Ninguém é contra a produtividade. Schwartz prega, fundamentalmente, a melhoria na compreensão das necessidades dos funcionários — sejam eles de cargos mais altos ou mais baixos.

E, acredite, há todo tipo de funcionário. Há aqueles que gostam de criar e os que gostam de seguir ordens. Os que gostam de fazer seus próprios horários e os que não ligam em fazer horários fixos. Os que trabalham com menos erros e mais lentos e os que fazem as coisas com mais rapidez e mais incompletas. A lista é infinita.

No sistema corporativista, parece haver mais preocupação com as ferramentas que a empresa considera necessárias para seu empregado trabalhar do que com o açõe que o próprio empregado precisa.

Somos inundados com ferramentas de trabalho que supostamente nos tornariam mais eficazes, e, em troca, a demanda por nossas habilidades cresce ainda mais. Um novo sistema de gerenciamento de orçamentos, por exemplo, só faz um gerente perder mais de seu tempo preenchendo planilhas do que de fato orientando seus subordinados. Com isso, ele precisa dispor de mais horas para completar suas tarefas.

Por mais necessárias que ferramentas sejam, elas também precisam cumprir seu papel de facilitar a vida das pessoas. Muitas, de fato, fazem isso, como videoconferência, programas de transmissão de documentos pela nuvem ou empilhadeiras automarizadas, por exemplo. Mas, às vezes, a tecnologia também nos impõe o excesso de informações e nos aumenta o trabalho manual.

Embora seja impossível escapar da imposição tecnológica hoje em dia, as empresas precisam ter a sensibilidade de ver como nós nos relacionamos com as tecnologias e como seus trabalhadores respondem a elas.

Às vezes, as companhias têm um foco tão grande em seus sistemas e tecnologias, que esquecem de exigências mais simples, e ainda assim, fundamentais, para o desempenho de seus profissionais.

É impossível descriminar essas exigências. Alguns querem liberdade de criação, outros querem mais responsabilidade em suas funções, e outros tantos querem trabalhar menos horas direto, mas com mais intensidade. É muito subjetivo para dizer, e, talvez por isso, muito difícil para as empresas avaliarem.

Mas fazer isso é melhor e mais barato do que amargar perda na produtividade e falta de motivação dentro do ambiente corporativo.

Nas palavras do próprio Schwartz: "A energia dos líderes é, para melhor ou para pior, contagiosa. Quando líderes explicitamente encorajam funcionários a trabalhar de maneira mais sustentável — e, especialmente, quando eles próprios servem de modelos de uma maneira sustentável de trabalho — seus funcionários são 55% mais engajados, 53% mais focados e mais provavelmente permanecerão na companhia, de acordo com nossa pesquisa com a Harvard Business Review."

Não se trata, assim, de cumprir todas as meticulosas demandas de funcionários mesquinhos e exigentes, e sim de saber suas reais necessidades principais e garantir políticas que priorizem a produtividade de maneira sustentável.

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Sérgio Spagnuolo
Volt Data Lab

Jornalista, editor e fundador da agência de jornalismo Volt Data Lab (www.voltdata.info). Coordenador do Atlas da Notícia, uma iniciativa sobre jornalismo local