Analisando a maioridade penal no mundo e onde o Brasil se encaixa nisso

Um projeto de dados sobre a "Idade de Responsabilidade Criminal" e o "Índice de Paz Global" em mais de 150 países

Sérgio Spagnuolo
Volt Data Lab

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Este artigo é parte do projeto independente de jornalismo de dados Volt. Para acessar gráficos interativos, outras informações e toda a documentação e fontes da reportagem, além de outros projetos, acesse o site www.voltdata.info

Falta proteção legislativa às crianças e adolescentes na maioria dos países do mundo quando se trata de maioridade penal, de acordo com um levantamento realizado pelo Volt.

O levantamento mostrou que uma considerável parcela dos países, inclusive os considerados “desenvolvidos”, ainda possuí a maioridade penal em um patamar bastante reduzido, não raro abaixo de 16 anos, mesmo que isso comprovadamente não tenha correlação com o nível de paz e segurança de uma nação.

O recomendado por muitas entidades de defesa de crianças e adolescentes e especialistas de direitos humanos, inclusive da ONU, é 18 anos — embora a idade mínima de responsabilidade criminal considerada aceitável pela Convenção Sobre os Direitos da Criança seja de 12 anos.

Em contrapartida, a legislação do Brasil permite um dos maiores níveis de proteção do mundo a crianças e adolescentes quando se trata de idade mínima para responsabilidade criminal. Aliás, poucos outros países possuem a tão comentada maioridade penal estabelecida em 18 anos — a exemplo de Peru, Uruguai e Luxemburgo.

Isso não quer dizer que o país seja mais brando em suas punições — afinal, adolescentes podem ser penalizados a partir dos 12 anos — mas sim que a lei habilita a proteção a menores infratores, a fim de separá-los de criminosos adultos.

E se é verdade que o Brasil tem uma maior tolerância constitucional sobre a idade de responsabilidade criminal, também é verdade que reduzi-la tem pouco ou nada a ver com uma melhora de padrões de paz e segurança em nossos países.

O Volt, site brasileiro dedicado a projetos de jornalismo de dados, analisou informações relacionadas à idade penal de quase 200 países, cruzando as informações com um reconhecido indicador de paz e segurança no mundo, o Índice de Paz Global (IPG), do Institute for Economics and Peace (IEP).

Conforme já alertado anteriormente por muitos especialistas, não existe correlação entre maioridade penal reduzida e a qualidade de paz e segurança de um país.

A idade penal mínima de cada país não necessariamente reflete a plena aplicação dessa idade pela Justiça, apenas reflete a proteção legislativa dos adolescentes

MAPA DO ÍNDICE DA PAZ GLOBAL: Os países em verde são considerados mais pacíficos, enquanto os em vermelho, os menos pacíficos. Países em amarelo tem classificação intermediária. Os números representam a idade mínima de responsabilidade criminal em cada país. Visite o site do Volt para ver o infográfico interativo

Como é possível ver no “Mapa do Índice Global de Paz” (acima), muitos países considerados pouco pacíficos possuem idades penais reduzidas (iguais ou menores a 14 anos), como é o caso de Rússia, África do Sul, Índia e China. Vale notar que a idade penal mínima de cada país não necessariamente reflete a plena aplicação dessa idade pela Justiça, apenas reflete a proteção legislativa dos adolescentes

Ao mesmo tempo, é verdade, muitos países do oeste e do norte europeu também possuem idades de responsabilidade criminal relativamente baixas, principalmente entre 14 e 16 anos, chegando até a 10 anos, no caso do Reino Unido. No entanto, na África, que possui muitos países com baixo índice de paz global, as idades penais são muito semelhantes, talvez até mais baixas, muitas ficando entre 7 e 14 anos.

Em contrapartida, o Uruguai, país sul-americano melhor colocado no IPG, tem idade de responsabilidade criminal de 18 anos, enquanto os EUA, bem atrás no IPG para um país rico, tem maioridade penal de 7 anos (alguns Estados norte-americanos não tem idade fixa, podendo por lei responsabilizar criminalmente crianças de qualquer idade).

A idade mínima de responsabilidade criminal considerada aceitável pela Convenção Sobre os Direitos da Criança é de 12 anos. Isso não quer dizer, nem de longe, que seja o recomendado, estipulado por muitas entidades de direitos humanos, em 18 anos.

A partir da análise de dados globais, prova-se inviável fazer um qualquer correlação entre maioridade penal reduzida e qualidade na segurança de um país

SOBRE A “IDADE DE RESPONSABILIDADE CRIMINAL”

A “idade de responsabilidade criminal” diz respeito à idade na qual um indivíduo pode ser considerado criminoso e julgado pelo sistema criminal de um país. No Brasil, por exemplo, um menor que comete um crime é considerado “menor infrator”, não um criminoso.

Alguns países prevêem a responsabilização criminal em diferentes idades, dependendo do tipo crime cometido e do discernimento apresentado pelo menor infrator. A Alemanha, por exemplo, possui condições diferentes para menores de idade, mas mesmo assim eles podem ser processados como criminosos a partir dos 14 anos.

A pesquisa do Volt considerou como dado final a menor idade de responsabilização criminal de cada país para avaliação — levando em conta proteção legislativa gozada por menores de 18 anos, e não à conduta judicial de praxe seguida nos países. Isso porque mesmo que um menor geralmente não seja rotineiramente considerado como “criminoso” no sistema judicial de certo país, ele carece de proteção legislativa e poderia ser julgado como adulto em algumas circunstâncias nessa localidade.

Muitos casos estão abertos às considerações dos juízes, que avaliam atos graves como o “discernimento” do infrator, o que muitas vezes pode ser subjetivo. Juízes podem escolher não condenar como adulto uma criança de 8 anos em um país cuja legislação não determina a idade mínima de responsabilidade criminal (como a Nigéria), mas isso não significa que há proteção legislativa para essa criança e ela legalmente poderia ter sido penalizada criminalmente.

DISCERNIMENTO JUVENIL

Uma noção muito comum na legislação de países que adotam idades de responsabilidade criminal reduzidas e também muito adotada no discurso favorável à redução da maioridade penal é o argumento de “consciência” dos próprios atos. Afinal, um adolescente de 16 anos, que já vota e trabalha (como muitos gostam de notar), não sabe o que está fazendo?

Não é uma pergunta irrelevante. Mas ela salienta um raciocínio mais focado nas paixões populares (relacionadas a justiça, vingança, certo e errado) do que de fato pode ser provado mediante dados e apurações independentes.

Um primeiro aspecto disso trata de que grande parte das legislações mundiais (Brasil inclusive), segundo dados compilados pela Child Rights Internacional Network (Crin), já prevê penas para menores infratores, especialmente para crimes hediondos. Ness caso, não se trata de impunidade e sim da busca pela reabilitação do jovem.

Outro aspecto, ainda mais relevante, diz respeito à ineficácia muito alertada (vide UNICEF, outros órgãos da ONU e muitas organizações de direitos humanos) de que não há correlação entre reduzir a idade penal e coibir a criminalidade.

Como disse, em 2014, o coordenador do programa cidadania dos adolescentes do UNICEF do Brasil, Mario Volpi, “o tema da redução da idade penal não tem muita relação com estatísticas, com mudança, com melhoria da situação, e sim é uma proposta mais fácil de ser entendida”, afirmou Volpi.

“Esses movimentos de agravamento de penas são muito mais uma tendência de afirmação de ideias baseadas numa vontade do que numa realidade, as pessoas acham e gostariam que, agravando-se as penas, os infratores não cometessem mais delitos.”

A UNODC, agência da ONU para combate a crimes e drogas, também se posicionou contrariamente, em março de 2015. “Consideramos que um debate informado deve se centrar nos direitos dos menores e em evidências científicas, levando em conta fatores biológicos e sociais, como facilitadores para a criminalidade juvenil”, disse em comunicado.

Como bem notou a ONG Crin, trata-se de separar a “responsabilidade” de um adolescente para a “criminalização” desse indivíduo. “Manter todos os menores de 18 anos fora do sistema judicial criminal não significa que os jovens que cometem crimes evitem ‘justiça’ ou que nada será feito sobre suas ofensas”.

O Brasil, no meio de tudo isso, tem uma legislação que — embora seja cumprida de forma displicente pelas autoridades e, não raro, cause mais danos aos adolescentes e à sociedade do que benefícios — está à frente dos demais países, buscando resguardar o direito de reabilitação do jovem, conforme recomendado não apenas por muitos especialistas e entidades de direitos humanos, como também pela ONU.

Resta saber se o Brasil quer ficar nessa ponta ou voltar para o meio.

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Sérgio Spagnuolo
Volt Data Lab

Jornalista, editor e fundador da agência de jornalismo Volt Data Lab (www.voltdata.info). Coordenador do Atlas da Notícia, uma iniciativa sobre jornalismo local