Afinal, a pandemia já terminou?

Muitos já superaram as restrições da pandemia, mas ignorar o impacto do vírus é possível?

FPG
Vox.POP!
5 min readNov 15, 2021

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Se não fosse por algumas máscaras (muitas delas com o nariz para fora) e os potinhos de álcool em gel pelos cantos, ninguém diria que a pandemia sequer aconteceu. Há quem se refira ao período como algo muito superado, uma lembrança de ‘quando ficamos em casa’. Eufóricos pelos efeitos da vacinação e a queda nos óbitos, muitos decidiram só ignorar que o coronavírus circulou entre nós e já abraçaram o ‘velho normal’.

Se para muitos parece fácil, sinceramente, essa transição ainda me causa estranhamento. Internamente, me sinto feliz de poder rever amigos e familiares com mais frequência, mas ainda não consegui abandonar o medo das aglomerações, nem ignorar o baque desses 19 meses de pandemia. Há dias, inclusive, que me pego pessimista, acreditando que logo poderemos ter uma desagradável surpresa, como ocorreu em 2020/21.

“A pandemia terminou, só sobraram os hipocondríacos”

Li essa frase outro dia no Twitter e a cada dia me convenço que ela representa bem este momento.

Com o avanço da vacinação, o fim das medidas restritivas nos horário e a ocupação dos comércios liberada, a sensação geral é que, mais do que nunca, a avaliação da gravidade da pandemia se tornou praticamente uma escolha pessoal: vai de cada um acreditar se ainda há risco ou se o vírus já é história. O resultado? No mesmo cômodo podemos ter alguém que não consegue ter coragem ainda de entrar em um local com mais de cinco pessoas, enquanto ao lado haverá alguém fazendo planos para o próximo carnaval, sem receios.

Desde janeiro, quando as primeiras vacinas foram aplicadas no Brasil, minha meta de vida era receber uma agulha no braço. Qualquer uma, contanto que fosse rápido. Até sonhei que era vacinado e já encontrava os amigos e familiares na saída do posto de vacinação, colocando o papo em dia. Por meses, minhas conversas quase sempre terminavam com um ‘logo depois da vacina a gente se vê, hein?’.

Na prática, entretanto, no mesmo dia que tomei minha segunda dose do imunizante também comprei mais 10 máscaras, porque percebi que dali em diante, mais do que nunca, cuidar da saúde seria um esforço particular. Se após quase 2 anos ainda há pessoas que usam máscara no queixo e que mantém as janelas fechadas em locais aglomerados, não contaria com a sorte de explicar o porquê de mantermos os cuidados preventivos, mesmo após a vacina. Não tenho mais paciência, prefiro fazer a minha parte calado.

Sim, já revi alguns amigos, viajei um fim de semana, até voltei a tomar um chopp no tempo livre, mas a avaliação de risco segue como uma constante, especialmente porque ninguém parece se importar mais com os marcadores nas filas, as janelas abertas ou a higienização nas mãos, por exemplo. Ainda não consigo encarar certas aglomerações em restaurantes ou bares sem um olhar de estranhamento. Para muitos, acredito, a vacina só carimbou o passaporte para poder aglomerar sem olhares de julgamento. Pessoas que já estavam reunidas anteriormente nas casas dos colegas, nas lives sertanejas ou nos ‘encontrinhos’ vip. Nada mudou. Nem vai mudar.

Trabalho semanalmente na terapia, que também começou na pandemia, esse retorno aos compromissos sociais, após meses em que o ápice da semana era ir ao mercado ou na farmácia. Me questiono até se desaprendi a só curtir os momentos, sem um medo de que daqui alguns meses tudo fechará novamente. Será que em algum momento vou só relaxar, sem achar que posso ter contaminado alguém? Ou me contorcer na cadeira cada vez que vejo alguém próximo (sem máscara) tossindo ou espirrando? A verdade é que talvez eu nunca volte a ser a pessoa da pré-pandemia e isso ainda me deixa um pouco assustado.

“O passado é uma roupa que não nos serve mais”

No fundo, havia uma esperança que ao tomar a vacina acordaria em fevereiro de 2020, semanas antes do primeiro caso confirmado de Covid-19 no Brasil. Magicamente, esqueceria todos os cancelamentos, os compromissos adiados, os meses sem sair de casa, as vidas que foram perdidas, as crises, as noites sem dormir com ansiedade, a demissão, as mudanças que vieram no período, as videochamadas para matar a saudade...

Como no Grande Gatsby, olhava aquela luz verde no final do deck como uma promessa de reescrever o passado e recuperar todo o tempo perdido. Alguns parecem que já conseguiram, mas não consigo ignorar a tragédia, jogar esses meses de quarentena no esquecimento e voltar a agir como antes. Afinal, vivia em outra rotina, outros cursos, outro trabalho, outras preocupações e contatos diários… Pouca coisa além da minha família, meus amigos e meu relacionamento permaneceram intactos após o coronavírus.

Me parece bizarro, portanto, jogar o peso da pandemia para debaixo do tapete. Seria como negar meu próprio amadurecimento no período. Outro dia li uma entrevista com o neurocientista Miguel Nicolelis que apontava a Covid-19 como a maior tragédia do Brasil, já que nunca havíamos perdido tantas vidas em um só evento, fosse em outras pandemias ou mesmo em guerra. “Quando a política bate de frente com a biologia, a biologia ganha de goleada”, enfatiza Nicolelis. Não é estranho que ao invés de absorver esse imenso luto coletivo, só não falamos mais sobre ele? Que falta fez (e faz) uma política preocupada com a vida, que desse a importância que o período precisava? Será que meses e meses com números de óbitos diários nos deixaram tão insensíveis que não conseguimos sequer mensurar o impacto da pandemia ainda? 600 mil brasileiros que não estão mais entre nós. Ou a justificativa de ‘estar cansado de ficar em casa’ explicaria essa alienação coletiva?

Não tenho respostas, só essa inquietação que me acompanha todos os dias nas últimas semanas. Fui um daqueles que chegou a acreditar que a pandemia nos faria rever muitos pontos de trabalho, consumo e relacionamentos, com potencial de transformação. Hoje, sinto que estamos ainda mais separados e com alguns retrocessos que me parecem inexplicáveis.

Mal começamos a sair da pandemia (ou já esquecemos dela, se for o caso) e logo ali já tem uma crise hídrica, que gera uma crise elétrica, resultado da crise climática, que reforça a crise política, em um contexto de crise econômica, que é reflexo da crise moral que estamos mergulhados… Entre tantas crises lamacentas que se alimentam por aqui, ignorar o coronavírus, talvez, seja nossa maneira brasileira de acreditar que os desafios foram superados. Sobrevivemos, afinal. Isso já seria um bom motivo para celebrar.

Por ora, ainda preciso de uma dose extra de otimismo para me imunizar contra os mal pensamentos.

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Tentando ser FASHION, aficionado pelas novidades POP e apaixonado pelo universo GEEK. “Cher acima de tudo, Madonna acima de todos.” 🏳️‍🌈🕶️